Surreal é um sinônimo para este ano. Com o fazer contínuo de planos e acúmulos de vouchers aéreos, resolvi arriscar uma passagem* para a Itália com uma companhia holandesa. A dúvida era saber se iria entrar ou sair de cada país. Então, com apenas uma mochila nas costas, no aeroporto internacional Schiphol, na Holanda, depois de ser submetida a várias verificações de temperatura e formulários, consegui embarcar e voar para o aeroporto de Malpensa, na Itália.
Em território italiano, outra inquisição e, com a cara mais lavada e sincera, respondi ao policial que estava indo visitar a minha segunda casa e o meu gato. Afinal, ai daquele moço desafiar qualquer sanidade mental dessa moça que vos escreve.
Nas montanhas onde vivo, tinha nevado cerca de 60 centímetros. Uma ótima desculpa “subentendida” para a viagem urgente de “extrema” necessidade. A verdade é que eu também preciso ver um pouco de Sol. Amsterdam é linda, mas creio não haver ser humano forte o suficiente para suportar, por vontade própria, o céu cinzento por meses. E, também, com a probabilidade de um confinamento social, — confirmado pelo ministro holandês uma semana depois da minha chegada em terras italianas — nada melhor isolar-se em meio à natureza.
Bom! No estacionamento italiano, o carro compartilhado que costumo utilizar, estava quase, para não dizer completamente, destruído pelos últimos usuários. O senhor do atendimento me desejou boa sorte para chegar em casa naquele tempo sinistro. Ainda que a quantidade de neve já tivesse baixado, dirigi uns 100 metros e voltei. Já era tarde da noite e optei por alugar um carro.
Na locadora, nada de pneus de inverno, somente correntes — preferi nem cogitar pensar em usá-las, mas a mente é traiçoeira. Imagine só, sozinha no escuro em meio ao frio congelante desembaraçando os ferros e tentando encaixá-los nas rodas dianteiras! “Oi!?” A atendente disse não ter outra opção e me ofereceu um carro mais alto. Pelo tardar da hora, resolvi arriscar.
Confesso já ter dirigido com a neve caindo e em asfalto, mas nunca tinha subido uma montanha em plena noite fechada conduzindo um veículo com tração apenas em duas rodas e pneus de verão — o esperado para esses tipos de situações seria um 4×4 com rodas apropriadas.
Pois bem, limparam a neve até metade do caminho, onde há asfalto, e o restante da estrada se tornou uma verdadeira aventura. O jeito foi controlar o volante, mantendo o pé na embreagem e moderando o acelerador, enquanto o carro patinava à beira do precipício. Frear nem em sonho. Adrenalina para despertar para a vida. Foi como andar na neve usando sapatilhas. Loucura fascinante!
Mas, devo dizer que o feito só foi completamente possível pelos escassos rastros do jipe de um amigo e de outro carro. Preocupado com a minha inexperiência em termos de dirigir na neve, naquele mesmo dia ele foi conferir a estrada e a casa. Relutante, ao amigo e ao meu parceiro, afirmei o meu direito de ao menos tentar para saber se seria capaz.
Ao máximo, deixaria o veículo em algum lugar na metade do caminho e subiria a pé, como muitos de nós fazemos em caso de forte nevasca. Ao mesmo tempo, eu precisava me desafiar e saber dos meus limites e medos reais. Ou não, né?! Há muitos por aqui que nem em se pagando arriscam pilotar em tempos assim. Nessas horas, me sinto completamente viva.
Durante o inverno, a vida em montanha costuma ser um desafio — contudo, nos últimos anos isso tem sido raro de acontecer. Por vezes, passamos dias ilhados dentro de casa e costumamos ter a despesa pronta para sobreviver. Um jeito muito útil, inclusive nesse período de isolamento social.
Você pode até rir, mas, em pleno século 21, nosso vilarejo italiano ainda não possui água potável. Todas as oito casas históricas do burgo e uma igreja, datadas do início de 1700, possuem poço, uma cacimba. E olhem que aqui nasceu um moço que poderia ter sido um papa. Sim! Pasmem! Mudam as administrações e as desculpas são sempre as mesmas: melindres econômicos, políticos e sociais.
Assim, durante o inverno não há quase ninguém por aqui. Quero dizer, há os animais da floresta, um gato, eu e, vez ou outra, um ou outro morador. Quando neva, sabemos da fartura de água para os próximos meses. E, talvez, com a diminuição dos voos e outros tipos de poluição por causa do Covid-19, a neve voltou a cair depois de anos. Vejamos aí um lado positivo para este ano: nevou!
Mas, voltando para o argumento dessa história…
Já tinha sido alertada pelo amigo do problema com o aquecedor central. Afinal, a falha técnica do aplicativo de comando virtual e o mau funcionamento da caldeira vieram a calhar exatamente quando a neve chegou. Em casa tudo gelado, em torno dos cinco graus. Fui aquecida com as boas vindas de Nerina, surgindo de seu cafofo de inverno como um bichinho de pelúcia. Acendi a lareira e passei algum tempo ali ao lado de Nerina — o gato preto misterioso que, por anos, se passou por gata enganando até os especialistas. Um(a) transgender, diria. Outra história para ser contada em outro texto.
Bom, até a visita de um técnico que se arriscaria subir o morro, foram dias dormindo com gorro e luvas. Dessa forma, pude ter uma ideia de como se vivia em alguns anos atrás quando não havia aquecedores movidos a gás ou eletricidade. Durante quase uma semana, o banho passou a ser dia sim e dia não. Sorte ter o luxo de me lavar na banheira, é relaxante.
Bem, antes da viagem estava me sentindo um ser inútil, fora do espaço — com aquelas típicas perturbações do tipo: “quem é você aos 39 anos de vida?” Além disso, estava chateada com a sequência de livros lidos exaltando histórias que só ajudavam minha autoestima despencar por escadas abaixo — literatura costuma ser o meu ponto de fuga em situações de crise ou no simples dia a dia.
A terapeuta tinha sugerido, então, observar aquelas leituras com outro olhar e buscar o que me incomodava e o que poderia tirar de positivo dali. Sem avisar, saí de Amsterdam, com três tarefas básicas: escrever, editar um vídeo e solicitar um trabalho online. Mas cá entre nós, com a desculpa de criar, fugi para o meio do mato.
Tentando evitar ladainhas… Já se vão alguns anos com vontade de trabalhar em algo prazeroso e fazer alguma diferença no mundo. Em 2018, pedi demissão de um serviço para um tratamento mental. Depois, em 2019 passei meses resolvendo questões de família no Brasil e, quando voltei estava certa de que em 2020 voltaria a atuar na minha área. Entretanto, como todos nós sabemos, veio um vírus que fez o mundo repensar o seu cotidiano.
Mesmo evitando reclamar e sendo grata por ter condições de continuar vivendo bem, perceber-me isolada por um longo período de tempo traz uma série de conflitos internos ainda a serem resolvidos.
No caso desta crônica, cito as festas de final de ano.
Nunca fui fã destas datas por uma série de motivos, não cabe aqui expô-los. E foi aí que, depois de uma prosa online com o Clube do Livro, resolvi seguir a sugestão das amigas e dar um voto de felicidade a esta época do ano. Tudo a minha volta está perfeito para tal. Além disso, estou sozinha com a companhia de apenas um gato. Um sonho para mim, diga-se de passagem! Que me perdoe meu parceiro, pois este deve chegar apenas na véspera de Natal.
Anotei a lista de vídeos (interessantes) de Natal para ver na plataforma online de filmes e séries. Depois de assistir um filme, fui despertada pelo estômago. Na cozinha, enquanto preparava um pão caseiro, resolvi abrir o aplicativo de músicas. E mesmo evitando, por anos, todas as sugestões natalinas, dessa vez quis buscar algo. Daí surgiu um moço chamado Michael Bublé; as outras opções eram demais para mim.
Ouvindo aquela voz cheia e suave, em um ritmo jazz super envolvente, me transportei para uma época e mundo bem distante desse tempo e sem perceber estava no embalo daquelas canções clássicas maravilhosas. Tomei Nerina pelos braços e gargalhei sozinha dançando com o felino. O álbum terminou e ouvi outro do mesmo rapaz. Enquanto fazia a janta, fiquei espantada por ainda não conhecer essas músicas desse moço canadense. Já tinha ouvido alguma ou outra, mas não todas essas beldades para os ouvidos. Aproveitei para também ouvir Frank Sinatra, Bing Crosby… E assim, sigo dançando pelos meus dias.
Pois bem, gente! De fato, é tudo uma questão de filtro. Tudo depende da maneira como queremos enxergar as nossas experiências e o mundo à nossa volta. Eu poderia embarcar na escuridão, choramingar as frustrações, reclamar do frio, evitar dirigir na neve, alimentar minhas memórias do passado e me iludir com as preocupações atuais e do futuro, mas nada disso mudaria este momento.
2020 está acabando. Por vezes, não fez e nem faz sentido, bem como essa crônica sem cabeça e nem pé. Foi e continuará diferente em todas as formas. Fazer o quê? Sugiro ir preparar algo com amor para si mesmo. Permita-se ouvir algo novo, ainda que não seja inédito para a sociedade. Mesmo que não se sinta amado por você mesmo, atue como tal. Se tiver um bichinho por perto, este com certeza tem algum afeto por você.
Sentindo-se bem-sucedido ou apenas um fracassado, pelos menos agradeça pelos queridos aqui presentes e por todos aqueles que já se foram. Eu, por exemplo, vou sentir saudade de um tal João. Ele se foi e “apareceu” uma linda flor em seu lugar.
Ao menos, desafie-se — nem que seja na coisa mais banal, simples e/ou irrisória. Celebre a vida e recomece. Vamos tentar? Se der errado, a gente tenta de novo. É clichê, mas uma hora vai dar certo.
Dezembro 2020
Foto da autora – Edsandra Carneiro
*Caro leitor(a) tenho consciência de que viajar de avião não é ecologicamente correto e tento compensar de outras formas, todavia é uma questão bem mais complexa para ser exposta em uma crônica livre de amarras…