(Por Eduardo Selga)
Aqui, no centro de Vitória, tenho caminhado inutilmente pelo deserto: em todo o perímetro urbano nenhuma livraria robusta. Apenas decrepitudes e sebos. Esse mofo contemporâneo afeta a cidade como um todo: está a cada dia mais difícil encontrar nos olhos transeuntes o brilho que ultrapasse o prosaico e encontre outras belezas. Há dez, quinze anos, quem caminhasse atentamente pela cidade poderia encontrar algum Augusto dos Anjos e outros poetas mortos ainda vivos em gestos absortos e sorrisos. Hoje, aqui e ali, desertificação. Sujeitos digitalizados.
Mas vou sair um pouco de Vitória. Nem tarda e eu volto.
Com efeito, a sociedade se desertifica. Sozinho na multidão, menino que de repente se desgarra da mãe e não consegue reencontrá-la, o sujeito está ermo, despovoado. Ele chora — e muito! —, porém abafa os soluços com as mais diversas máscaras. Aquele vasto repertório da espécie humana que o sujeito carrega consigo, mesmo sem saber, no imaginário e nos sentimentos, toda a coletânea que a existência produziu em nós desde as primeiras cavernas, o sujeito parece não saber o que fazer com ela, ou não a enxerga. De modo que está meio atolado na areia movediça desse deserto sem referências seguras. Um mundo ignorante, um homem perdido em razão de perder palavras que antes diziam e hoje parecem boiar ou cair em solo árido.
As palavras poéticas podem ser uma corda a nos tirar desse buraco de areia. Improvisadas tranças de Rapunzel. Ainda que a informática interligue as épocas e tudo pareça muito pavimentado; ainda que nos traga literatura de todos os passados e do presente, de boa e de má qualidade. Ela estimula o desespero da velocidade e o consumo sôfrego da palavra que, mal mastigada, não é bem digerida. Logo, o poético não se forma na alma. Quando muito, o faz incompletamente.
Quando abraçadas ao papel, ao livro, as palavras não escorrem com a mesma facilidade líquida da internet, não navegam no ar como poeira ou dente-de-leão. Os leitores é que ganhamos maior chance de flutuar. As palavras como que adquirem solidez, o poético parece menos abstrato porque há um objeto concreto e palpável que o suporta — o livro. Solidez que nos infla, viramos balão, zepelim, pipa, e passamos a enxergar do alto.
Mas vou retornar um pouco a Vitória. Não tarda e eu saio.
Divaguei esse tanto porque eu, arrastando-me nas areias asfálticas do centro da capital, escrevendo em meu telefone celular qualquer inutilidade à guisa mensagem que não sei se será lida, procuro há dias por uma livraria que não seja de shopping, que não me induza a comer pizza em praça de alimentação só porque comprei um best-seller qualquer, previsível do início ao fim. E não encontro. Para onde elas foram? Teriam arrepiado carreira? É verdade, Vitória tem bibliotecas razoáveis administradas pelo poder público, mas se eu quiser levar Augusto dos Anjos para casa definitivamente, tomando-o pelo braço aqui em Vitória eu não consigo, porque as calçadas não abrigam livrarias. Ou melhor: até o encontro em alguma banca de revista ou sebo, mas será um Augusto roto, alquebrado como ele não é.
O motivo? Talvez a tecnologia ágrafa e incuta tenha afundado as livrarias que funcionavam como uma espécie de âncora, elas que eram navios abertos à visitação na Duque de Caxias, preferencialmente. Essa ruazinha, um cais.
Entretanto, o bom senso me diz que esse tipo de saudade é inútil. Melhor parar por aqui, enquanto continuo perambulando pelas areias.
Imagem: Christopher Bowler, em www.pinterest.com/pin/282882420320257607/