Ainda se ajeitava na cadeira do avião e já estava eufórico com a projeção na cabeça dele.
Aquela imaginação tão real e fértil tornou-se surreal para mim, principalmente pelo meu estômago vazio. Antes, tentaria adormecer os roncos com alguns aperitivos comprados no voo entre Amsterdam e Lisboa:
— Daqui a pouco, vamos comer algo muito especial. Você vai gostar! Tenho certeza de que vai se encantar com o delicioso prato. Fantástico! Vou te levar para conhecer uma culinária típica de Portugal.
— Hum? E qual é? Você está falando de comida. Não almocei e nem parei para fazer um lanche nesta tarde…
— Ahnnn! Daqui a pouco você come. Como estava dizendo… Em Lisboa, tem um lugar que é praticamente um retorno ao passado. Você gosta dessa coisa de comunicação e cultura por meio do alimento e vai se apaixonar.
— Gente do céu! Você sabe o nome do prato?
— Não lembro. Melhor assim, será surpresa!
— Agora fiquei curiosa. Conta, vai!
— Deixa para hoje à noite. Então, como é mesmo que se diz…?
A prosa e discussões sobre portugueses e colonização ganhou a viagem inteirai, interrompidas apenas pela incrível transformação da paisagem cinza para o Sol, o azul do céu e as nuvens.
…
Chegamos na Garrett 48. Durante todo o trajeto do Aeroporto até o Centro, ele buscava algo pela janela do ônibus. Pelo visto, continuava à procura.
— Vamos jantar? — pergunto depois de nos ajeitarmos no agradável apartamento.
— Sim, claro! Por aqui deve ter um daqueles lugares que comentei contigo no avião. Essa rua é importante, não é?!
— Pela história de Lisboa, sim. Mas não esperava essa multidão e essas trocentas lojas —“Black Friday” diziam os cartazes. Para nós, terror das compras.
Confesso minha ignorância por determinadas situações. Garrett para mim era um poeta e, naquela rua, a turma de escritores do passado se encontrava para trocar um dedo de prosa. Sabia que iria “encontrar” Fernando Pessoa para tomar um cafezinho. Seria o meu presente de aniversário. Um capricho meu. Todavia, não esperava lojas abertas até às 22:00 horas.
Mas, voltando ao prato misterioso…
Depois de uma caminhada, meu parceiro tentou explicar a iguaria. Insistia em dizer algo típico de Lisboa. Contudo, exclamei: “Galinha assada!”
— Não é galinha assada. Não vai ao forno. Eles têm um negócio assim, óh! — gesticulava com os braços e continuava:
— É longo. Fica preso de um lado ao outro e gira. Atrás, tem uma parede com uma espécie de fogo, mas não aquele fogo de lareira. É um tipo de slow food.
— Isso é frango no espeto, como se diz no Brasil — falei tão certa que fiquei até insegura com a minha interpretação de holandês para português.
— Não é não! Tem outro nome — bateu o pé.
— Gente, como não? Você disse que o frango, ou a galinha, é temperado e depois enfiado em uma espécie de espada e fica girando enquanto é assado…
— Sim.
— Então, isso é galinha assada, ou frango no espeto, tanto faz. A gente come no Brasil. Em alguns lugares, eles ficam girando em um compartimento elétrico e muitos chamam de “TV de cachorro”. É delicioso! Costuma vir acompanhado de farofa, feijão tropeiro, arroz… Você já comeu…
— Não! Não! Não! Nada disso. Não tem nada de elétrico. Você está confundindo as coisas.
— Ora essa!? Pode ser elétrico ou na brasa. Tipo no churrasco, sabe? Colocam naquele ferro comprido… — eu quase desenhava para ele entender, mas ele continuava com a expressão de perdido, desiludido e desapontado.
— Você quer me dizer em italiano ou inglês?
Com uma sensação de estupidez fisgando minhas orelhas, tentava decifrar e ter compaixão por aquele ser.
— É isso, brasa! — disse ele, mesclando a palavra brasa para italiano.
— Então, deve ser frango assado na brasa. Talvez a gente encontre uma churrascaria por aqui. Eu vi fotos de frangos assados em alguns restaurantes pelos quais passamos. Venha? Deve ter algo.
— Você não está entendendo. Isso é uma tradição de Portugal. Há nas ruas mais clássicas da cidade. Devemos entrar nesses becos e perguntar. É um restaurante diferente, é praticamente um show de comida. Você sente o cheiro por onde passa. Tem fumaça. Os lugares são à parte. Tem algo especial que você só vai compreender se ver com os seus próprios olhos.
Tentei dizer que aquela tradição poderia ser vista no País onde nasci. Mas o cabeça dura tornou-se uma rocha de teimosia. Foi quando comecei a pedir informações a quem eu encontrava pela frente.
Falei com a moça da sapataria, ela desconhecia a descrição do meu parceiro. Fomos para o Café A Brasileira, paramos para um drinque e o garçom comentou: “Não se vê mais frangos pelas ruas como antigamente.” No misto de línguas, todos saíamos confusos da conversa. O moço sugeriu tentarmos outros estabelecimentos. Ele morava do outro lado da cidade.
Passamos pela livraria mais antiga do mundo e, com tanta gentileza, nos direcionaram para uma possibilidade. Nos Armazéns do Chiado, a simpática moça nos ofertou longos minutos de prosa. A conversa ganhou um tom antropológico, cultural e econômico, a ponto de discutirmos as atuais situações do Brasil, Portugal e Holanda.
Nas palavras da atendente, a tradição foi se extinguindo com a chegada dos supermercados, valorização dos produtos industrializados e, consequentemente, queda na produção de produtos e iguarias artesanais. O nome popular em Lisboa é frango assado. Ponto.
Agradeci a conversa e seguimos para a sugestão da moça. Ela não tinha certeza se iríamos encontrar como desejado, mas tinha esperança. Rua acima, ladeira abaixo, desvia daqui, gira ali, sobe escadas, desce escadas mais uma ladeira e…
— Senhor, boa noite! Por gentileza, sabes me dizer onde encontro frango assado? — já me sentia no direito de puxar um português de Portugal.
— Minha cara, eu tenho frango assado na minha casa. Se a senhora quiser, eu vos convido para jantar comigo — respondeu abrindo um sorriso sarcástico, ainda que muito gentil.
Corei sem graça.
— Não me entendas mal, senhora. Não a fiz a corte. Usei uma expressão para dizer que nós servimos frango assado neste restaurante.
Pelo meu olhar de assustada, e a confusão na mistura vocabulástica do holandês, o moço passou a falar inglês conosco. No meio daquelas palavras cruzadas, tentamos explicar o tal tradicional frango assado…
— Talvez vocês encontrem subindo a escadaria.
— Obrigada.
…
— Deve ser aqui. A placa diz “Rei do Frango Assado” — afirmo, sentindo um alívio.
Ele entra no estabelecimento lotado e diz:
— Não é aqui. Talvez você não está sabendo explicar…
Perdi a paciência.
— Eu? Basta! Você está falando de algo que viu há anos e pensa que a cidade parou no tempo. Algo que eu não sei e pelo visto ninguém sabe. E, agora, nem eu mais sei se sei falar português direito. Estou até confusa tentando descobrir este bendito mistério de frango, galinha ou galo assado. Se quiser, peça ajuda você mesmo.
— Você é que é galo, lembre-se disso! Está em casa. Já canta como tal. Veja só! — ironiza no seu típico tom de moleque grande — Você é quem fala português, é a sua língua materna… Por favor!
Nessas horas, haja chuva de calmaria.
Passando por um beco, uma bendita alma nos indicou o Bonjardim. Talvez lá encontraríamos o tal tradicional prato de Portugal.
— Tenho certeza de que você vai se encantar por este prato. É saboroso. Crocante por fora e macio por dentro. Sinto o gosto até hoje… — empolgava-se.
— Sinceramente, poderíamos comer bolinhos de bacalhau ouvindo Fado. Depois, poderíamos provar os pastéis de Belém. Típicos daqui — contava até mil e respirava fundo quando conferi a hora. E dei um ultimato:
— Por hoje, só quero comer alguma coisa e ir dormir. Nós estamos há mais de três horas buscando esse frango.
…
Chegamos ao restaurante, aleluia! Mas, com tantos questionamentos, o garçom também ficou em dúvida. Falávamos a mesma língua? Ou seria um prato dos antepassados? No fundo, acho que garçom viu dois urubus famintos. Para ter certeza, nos convidou para conhecer a cozinha. (Perdoem-me os vegetarianos ou defensores dos animais. Ainda busco respeitar e compreender o alimento como uma das possíveis formas de comunicação).
Quando vi aqueles frangos espetados naquela barra de metal girando em um compartimento com brasas na base, tive uma crise de risos.
— Você me “prometeu” o que eu costumava comer nos finais de semana na casa dos meus pais. Com as meninas, em Jardim da Penha, ou quando visitava alguém no interior. Por horas, estamos procurando um prato tão comum no Brasil. Até você já comeu, só não viu onde assaram. Também comeu pedacinhos no restaurante a quilo. É vendido até na padaria, geralmente nos dias de domingo. Você esqueceu que o único holandês aqui é você?
Nestas situações, o melhor remédio para curar o ego é o riso. E, para ser ainda melhor, o garçom teve a decência de ser um breve e simpático professor de arte da culinária portuguesa.
Sim, o frango assado do restaurante é muito bom. Se você gosta de comida caseira, simples ou de boteco, entenderá o porquê do encanto e desejo de um holandês em comer um prato típico.
Todavia, ainda não é o fantástico lugar para o menino que nasceu abaixo da linha do mar. O garoto crescido retornou a Portugal com a expectativa de rever um espetáculo. Um homem que esperava (re)encontrar uma espécie de fábrica de sonhos existente apenas em Lisboa.
Muito menos descobrimos a origem do típico, antigo, tradicional frango assado.
E, pois bem, sabemos que gosto é algo muito particular. Por indicação de um casal francês, fomos jantar no Mercado Central de Lisboa, no badalado Time Out. À noite, são servidos pratos — preços bem acessíveis — criados por chefs premiados com estrelas Michelin. A decoração merece foto. Contudo, o tempero passa longe do saber autêntico de um suculento frango assado, encontrado em uma cozinha simples à moda antiga.
…
Algumas vezes, temos um único ponto de vista de um lugar, seja porque alguém nos contou ou porque estivemos lá uma vez e gravamos uma impressão que se tornou fixa na nossa cabeça. Todavia, cultura e culinária não são estáticas. Há sempre uma mistura dali e um tempero daqui. Mesmo falando a mesma língua, algumas situações são bem diversas entre determinados lugares.
…
Na manhã do dia seguinte, no Café A Brasileira, assim que entramos no estabelecimento, vi um sonho (aquele pãozinho recheado com creme). Meus olhos brilharam. Também vi luz e alegria no olhar do parceiro. Ele já se adiantava em dizer que tomaria um cappuccino e comeria um bombolone alla crema — ou seja, a mesma coisa!
— Senhor, por favor! Um galão (café com leite — estava orgulhosa e feliz pela dica de uma amiga), um cappuccino e dois sonhos!
— Desculpa senhora, mas não temos sonhos.
— Uai! Acabou? Eu tinha visto alguns agorinha mesmo. Que pena!
— Na verdade, desconheço. O que estás a dizer?
— É um pãozinho com recheio de creme.
— Temos cá vários com creme. Talvez seja melhor a senhora me mostrar. Podemos? — o jovem rapaz me indica o balcão. Eu já me sentia meio doida e perdida. Pensava se tinha sido afetada em algum lugar no meu cérebro e quase me dava por desespero nestes ruídos de linguagem. Mas, por fora, mantinha um sorrisinho de desentendida. Na verdade, estava feliz por celebrar a vida em um lugar com a presença do Sol. Era isso: o brilho radiante do Sol! Os últimos novembros foram cinzentos.
— É esse aqui, senhor! Como vocês chamam isso em Lisboa?
— Ah! Bola — responde com um riso frouxo. Enquanto nos confundíamos em nosso próprio idioma, outros que estavam no balcão gargalhavam e tentavam dizer que a confusão é bem comum de se acontecer.
Com tanta alegria e hospitalidade, passamos a frequentar o café todas as manhãs. Todos os dias, sentava-me ao lado da estátua de Fernando Pessoa. Contudo, a vida viva se passa lá dentro do estabelecimento. As paredes falam e ofertam dicas para sermos abertos e despertarmos da nossa ignorância ao desconhecido, mesmo se este for popular.
Pelos dias que estivemos em Lisboa, aprendi que bolinho é pastel de bacalhau. O holandês abriu os olhos para perceber os falsos cognatos entre línguas latinas. Bacalhau à Braz não é Bacalhau à Brasa. Basta perguntar para ter certeza. O que parece ser nem sempre é. Clichê, mas é verdade.
Mesmo sabendo que, em Lisboa, café se diz bica, e as pessoas são gentis, calorosas e prestativas, de vez em quando, vamos nos entreolhar e nos perguntar: “O que estás a dizer?”
Bem como a atendente, no Castelo de São Jorge, ao me pedir desculpas por me indagar se eu gostaria de água fresquinha:
— Ai, perdão! — disse a moça.
— Perdão, porquê? Você está me oferecendo um bom serviço. Fique tranquila — retruquei sem entender.
— É porque fresquinha para as brasileiras tem conotação negativa — disse, sentindo-se envergonhada.
— Que isso! Relaxa. Talvez essa é a história por um ponto de vista. Por favor, deixe-me contar outras versões dessa palavra… — e assim, nos perdemos na prosa até que alguém coçou a garganta para nos alertar da fila no café.
Viajar é isso: permitir-se perder-se no tempo, no outro, em nós mesmos, no cheiro, no som, no paladar, nas palavras, nas histórias… — vivendo apenas o agora.
Dezembro de 2016
Foto da autora
Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.