— O senhor é viado?
— Claro que não, delegada!
— Dou-to-ra delegada. E por que “ cla-ro-que-não”? É homofóbico?
— Não, não. Mas o que isso tem a ver?
— Quem faz as perguntas aqui sou eu, certo?
— Sim, deleg…
— Dou-to-ra delegada! Mas vamos do início. Nome.
— Armando José Pinto.
A delegada e a mulher acusada pelo rapaz se entreolham e sorriem.
— Muito bem, seu Armando Pinto, vamos ouvir sua versão.
— Tem um José no meio…
— Que José, rapaz?
— Tem José depois do Armando e antes do Pinto.
— Olha aqui, seu Armando! Se o José fica na frente do Pinto, não quero saber. Por ora, sua vida sexual não está em discussão. O senhor procurou a Delegacia porque diz ter sido assediado por esta senhora aqui ao lado. O senhor, já vi, é uma pessoa cheia de melindres, de não-me-toques, com qualquer bobagem se ofende… Não me faça perder a paciência e conte logo a sua versão.
— Bem… Estava na feira, escolhendo umas mandiocas, e essa senhora chegou perto, me dizendo gracinhas.
— O que ela disse?
— “Nossa que mandiocão!”; “Adoro!”; “Gostoso.”; “Comia todinho.” e coisas do tipo. Ainda passava bem perto, sorvendo a língua. Se insinuando mesmo.
A delegada olhou para a moça.
— É verdade, isso?
— Bem, delegada, tudo começou um pouco antes, quando nossos olhares se cruzaram. Eu escolhia cenouras e ele, maçãs. Um rapaz que, ao escolher maçãs, troca olhares com uma mulher é porque…
— Mostra interesse! — completou a delegada. — Tá dando condição.
— Pois é! Depois, esbarro com ele comprando mandioca. Tava ou não tava pedindo pra levar uma cantada?
— Seu Pinto, sinceramente… Ela é uma fêmea…
— Doutora delegada! Não é isso que define uma fêmea. Ela é uma tarada!
— O senhor é muito sensível. Tarada? Olho para ela e o que vejo? Uma mulher bem vestida, me parece bem-educada do tipo que cumprimenta os porteiros. Enfim, uma cidadã de respeito.
— Bem vestida? Cumprimenta os port… O que isso tem… Bem, doutora, nada disso dá a ela o direito de me assediar.
— Claro que não. Como foi isso?
— Bom, terminei a feira, entrei no ônibus, vi que me seguia. Na condução lotada, puxou um papo esquisito, me convidando para sairmos. Eu dizia não, mas ela insistia.
— Mas, quantas vezes vocês, homens, dizem “Não” querendo dizer “Sim”?
— Não é não! Simples assim. Aí, sem mais nem menos, passou a mão no meu cabelo.
— Mas cabelo é algo tão sem importância, seu Pinto, que, quando a gente corta, nem sente dor. Que bobagem é essa?
— Ela não parou de tentar botar as mãos no meu corpo! Alisava meus braços…
— Somos um povo caloroso.
— Não ficou por aí. Passou a mão na minha bunda, roçava seu corpo contra o meu…
— O senhor estava com esse shortinho?
— Sim! Saí de casa para ir à feira.
— É, seu Pinto… Mas com um shortinho provocativo desses… Há de convir…
— O short é feito de tecido, e não de provocação, doutora delegada.
— Ah! Abre o jogo, bonitão! Qualquer homem se sentiria lisonjeado em ser patolado por uma mulher respeitável como a dona aqui. Se não, por quê ficariam andando por aí de camisetinha com os braços musculosos de fora? E essas calças que dão para ver a cuequinha? O senhor deu mole! Se ela não fizesse nada, o senhor mesmo ia pensar que era sapata… Aliás, o senhor está com os mamilos praticamente descobertos. Tá encorpadinho, hein, Pinto?
— Está fazendo 40 graus. Devo mudar meu jeito de vestir porque essa mulher é incapaz de respeitar um homem? Para se livrar do assédio, homens devem fazer o quê? Usar apenas calças e mangas compridas, tipo um uniforme anti-cantadas?
— O senhor disse uniforme? Uiiii… Ah! Pinto faz isso não. Me amarro num uniforme. Tô achando que você também gosta de provocar o mulherio com palavras.
— Que história é essa de “também gosta de provocar”? Eu tenho o direito de andar como quiser e não ser importunado nem julgado por causa disso. Ou a senhora está mesmo sugerindo que eu fique o tempo todo com o corpo coberto?
— Ninguém está dizendo isso. O que é bonito é para se ver. Com esse par de coxas, tem mais é que desfilar sua beleza.
— Dou-to-ra, vou ligar para o meu advogado. Sou a vítima, exijo respeito. Vou à Justiça.
Aí foi a vez da acusada se manifestar:
— Calma, seu Armando! Não precisa tanto. Eu errei. Errei no que fiz, no que falei e no que pensava. Admito que minhas brincadeiras, de cunho feminista, ultrapassaram os limites do respeitável. Sou fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes invasivas e abusivas podiam ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas. Mas sou tão vítima quanto o senhor: vítima da década em que nasci, vítima das feministas, dos brinquedos de casinha e cozinha, dos vestidinhos cor de rosa, dos laços de fita gigantes. Sou vítima da Suzy, da Barbie, da Amiguinha… Viver cercada por bonecas e fazer o que bem entender com elas pode ser uma boa explicação, não? Vamos resolver isso numa boa?
— Sinceramente? Quando a senhora me disse gracinhas, e eu não sorri, só piorou o linguajar. Quando recusei seus convites, fez que não ouviu. E, quando me tocou e me afastei, manteve o assédio. Assim, a senhora mesmo me leva a buscar justiça. Afinal, seu comportamento deu margem a uma única interpretação: a senhora tava pedindo.
Martha Aurélia Gonzalez escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras