Quem primeiro falou comigo foi o blazer azul marinho. Sério, formal, me contou haver roupas chateadas. Afinal, algumas portas do armário não eram nem mais abertas. Havia peças iradas; outras, tristes.
— Aquela sua blusa preta de paetê perdeu o brilho — me disse.
— Não havia porquê me arrumar tanto para ficar em casa, argumentei.
A saia preta entrou na conversa:
— Olha, nós os clássicos, estamos acostumados a passar uns tempos de lado. Entendemos como férias, porque sabemos: depois você volta. Mas aquele pessoal lá das outras seções viviam na folia. É melhor você ir se explicar. Vá com calma. Tá todo mundo com os nervos à flor da trama. É difícil ficar tanto tempo trancafiado.
Com mil botões! Eu sempre dei força para quem quis sair do armário. Agora, terei de enfrentar o meu. Abri as portas e, confesso, algumas roupas, nem reconheci. Uma blusa vermelha fogo disparou irônica:
— Olhaaa! Quem é vivo sempre aparece!
— Oi, gente! Tudo bem? — balbuciei, meio sem graça.
— Como poderia? Estamos trancadas há semanas sem ver a luz do sol. Estou com você até o pescoço — retrucou a de gola rolê.
— Pessoal, vivemos dias difíceis com esse novo coronavírus. Não tô saindo.
— Mas tá trabalhando em casa. Então? Nunca ficou perambulando de pijama…
— Claro, mas aí eu ponho um kaftan.
— Olha, pashimina. Tá achando chique ficar de kaftan — retrucou a blusa de seda.
— Ela não nos prestigia — respondeu a echarpe de pashmina.
— Do que estão falando? Valorizo vocês, sim. Ora com um colar, ora uma pulseira. Enfim, sempre uma biju bacana para realçar.
— Não, não, não! — apontou o anel. E sentenciou:
— Outro dia, comentou: “Vão-se os anéis, ficam os dedos.” Nunca pensei ouvir isso de você. Achava que sempre me daria a mão, agora, não sei mais.
— Gente, vocês têm de ser mais compreensivos. Olha o casacão de frio. Tá um tempão no armário e não reclama.
— Mas, em compensação, quando sai, é para pegar aeroporto, ver gente nova, comidas diferentes, lugares maravilhosos. Assim é fácil…
—Mas eu tenho tanto carinho por vocês. Quanta gente sai pendurando uma roupa por cima da outra. Aqui, cada uma tem seu cabide. Poxa, tô me sentindo injustiçada.
— Esse sentimentalismo não lhe cai bem. E essa história de meu cabide, minha vida não prova nada. Você não é a louca dos sapatos? Vá lá na sapateira ver a situação deles.Tal qual uma superpopulação carcerária. Uns em cima dos outros. Tudo apertado. E, agora, nem banho de sol. Um horror! — denunciou a bolsa.
— Eu entendo essa necessidade de sair. Não queria passar por isso também. Sinto muito.
— Sinto muito? — retrucou o cinto. E surrou:
— Nós vivíamos agarradinhos. Partilhava com você as alegrias de pular para o furo da direita. E nem se deu ao trabalho de vir antes. Bem, pelo que vejo, quando voltarmos a sair, pulará sim, mas na direção contrária, não é, calça jeans?
— Olhando, bem, acho que esse corpinho não me pertence mais — gargalhou com sua boca de sino a calça.
— Chega! Aí já é demais! Prestem atenção: o último grito da moda é: fica em casa, entenderam? Fica em casa! E é isso que todo mundo deve fazer.
Bati as portas, mas, antes de sair do quarto, ouvi meu vestido favorito comentar com os demais:
— Não disse? Ficou mascarada.
Martha Aurélia Gonzalez escreve quinzenalmente para o www.clubedecronicas. com.br e não vê a hora de poder bater perna na rua.