Novo Natal

— “Lá, lá, lá,lá… Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vindo do interior…”

— Belchior, para de cantar pelo amordedeos. Tá com essa música chiclete desde que saímos de casa.

— Ah, Baltazar, gostei desse som. Sei lá, me identifiquei.

— Se identificou? Você não é um rapaz, é um senhor. Tampouco latino-americano. Como assim, sem dinheiro no bolso? Está levando ouro para o Menino Jesus! Sem parentes importantes? És um rei, um sábio. Ora, faça-me o favor. Nem seu camelo está aguentando mais essa cantoria.

— Vocês podem parar de brigar? Gritou Gaspar. Assim, não consigo me concentrar no caminho. Temos de ficar atentos ao céu. Essa área não tem internet, não tem waze. Nada. Vamos  nos arrumar só com a estrela guia mesmo.

Eu alertei, poderíamos ter agendado uma chamada pelo Zoom. Falaríamos com a Virgem Maria, com São José no conforto da nossa casa, mas ninguém aqui me escuta e quando quero cantar, me reprimem.

Belchior, é um momento histórico…E quanto aos presentes? Os Correios estão atrasando horrores. Pelas minhas contas só vamos chegar lá pelo dia 6 de janeiro. Se despachássemos os presentes, além do frete caríssimo, iam ser entregues depois do Carnaval.

— Qual o problema ser depois do Carnaval? É quando o ano começa mesmo. Você é muito apegado a tradições, Baltazar. Vê essa história de presentinho. Enfrenta fila, gasta muita grana e acaba comprando qualquer coisa só pela tra-di-ção. Aí, dá algo que a pessoa nem vai usar e recebe o que não gosta. A maioria das vezes é assim.

— Gosto de presentear, e, não, não compro qualquer coisa, não senhor!

— Não? Então me diz: o que você tá levando para o Menino Jesus?

— Mirra.

—  What the fuck is this? Em bom português: isso é o quê?

— Ué, mirra é mirra.

— Baltazar, eu tô levando ouro porque o real tá cada dia mais desvalorizado. Se ele souber negociar, fica rico. Como é judeu, tem tudo para fazer bons negócios.  Se o Menino fizer uma postagem-ostentação mostrando o ouro, vai chover haters. Então, Gaspar tá levando incenso para afugentar os invejosos. Agora, me diz, essa mirra serve pra quê?

— Belchior! Baltazar! Dá para vocês ficarem quietos um instante? Se concentrem na viagem. Trouxeram tudo?

— Sim, Gaspar, estou aqui com algumas máscaras reserva, face shield  e tubos de àlcool em gel, respondeu Baltazar.

— Lembrem-se de manter distância de pelo menos um metro e meio de todos. Antes de sairmos de casa, recebi um zap informando que ao chegarmos um anjo medirá nossa temperatura e fará alguns testes para podermos entrar. Pode haver fila porque metade dos anjos está em home-office.  Comportem-se, os lugares foram limitados a 40% da capacidade da Manjedoura. Então, é uma honra estarmos lá dentro. Nada de ficarem discutindo.

— Então vai ser uma festinha restrita?

— Que festinha, Belchior? Não tem festinha nenhuma. É uma visita para o adorarmos, e vai ser vapt vupt.

Cumequié? Estamos há meses trancados em casa, só indo ao mercado, à farmácia e olhe lá. Vamos atravessar o deserto e, não vai dar nem para tomar um gin tônica, um vinhozinho?

— Belchior, os pais são pessoas simples e assim será o encontro.

— Que eles são simples eu saquei há tempos. Não fizeram nem chá revelação para divulgar o sexo da criança, mas daí no nascimento não ter nada…

— Belchior, para de resmungar e vou logo avisando: nada de fotos e selfies com o Menino.

— Mas, Gaspar, esse nascimento tem de viralizar. Está escrito nas estrelas: Jesus quando crescer terá muitos seguidores. Se começar agora, tanto melhor. Economiza anos de marketing digital.

— Belchior, o Menino Jesus não está interessado em fazer marketing, gerar leads, engajamento ou sei lá mais o que passa na sua cabeça. Sua mensagem é clara: quer apenas que nos amemos uns aos outros e, para isso, os símbolos escolhidos são simples: o pinheiro porque é a única árvore a não perder as folhas mesmo no inverno, representando a vida; a ceia, para sempre partilharmos o alimento com todos. Simples assim.

—  Tudo bem, sou sempre voto vencido mesmo. Mas vocês hão de concordar comigo, uma manjedoura não é um ambiente tão instagramável, então, seria pertinente investir no lançamento, no conteúdo, tentar gerar mídia espontânea. Há pessoas  com dificuldade de entender até as coisas mais simples e podem, sei lá, acabar achando que o pinheiro de Natal é só para colocar presente e a ceia para comer até quase passar mal. Periga  Natal significar apenas mais um feriado. Daqui a uns dois mil anos, não venham me dizer que eu não avisei.

Martha Gonzalez escreve, quinzenalmente, no www.clubedecronicas.com.br e, apesar de gostar do Natal, só recentemente descobriu que mirra é uma planta.

Imagem: banco gratuito (Pinterest)

Primavera, 2020

 

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