Ler para os filhos é um dos mais saborosos atos de amor dos pais. Estimula a imaginação, desenvolve o gosto pela leitura e o espírito crítico. O ato é ainda mais efetivo quando os adultos não se restringem ao escrito e, além de leitores, tornam-se verdadeiros contadores de histórias, estimulando, inclusive, a interação dos pequenos.
Mas é aí que mamãe e papai têm de fazer o dever de casa. As crianças, hoje, já não vivem mais só no mundo do faz de conta.
— Querida, vou contar a história de Chapeuzinho Vermelho.
— Que nome engraçado!
— É que ela sempre usava capa e chapéu vermelhos.
— De que grife, mãe?
— Não tinha grife, filha.
— Uma roupa tão diferente que não é de marca… Ela devia sofrer bullying na escola.
— Não, minha linda! Chapeuzinho era descolada — responde e, aproveitando a deixa, completa:
— Sabia que é bobagem gastar dinheiro com roupas de grife. Sua mãe comprava em feiras hippie e brechós. A garota era antenada.
— Ah! Então a desligada era a mãe, porque, roupas assim não têm proteção UV.
— Filha! Esquece a roupa. Vamos à história:
— Certo dia, a mãe de Chapeuzinho mandou-a, a pé, levar uma cesta com guloseimas para a vovó.
— O que tinha na cesta?
— Hum… Várias delícias: pães doces, geleias, bolos.
— Caraca! Tudo isso para a velhinha? É muito açúcar!
— Eram dietéticos, filha. E também sem lactose e glúten — adiantou-se a mãe, pensando se deveria proibir a menina de assistir aos programas sobre saúde que passam na TV.
— Puxa! Uma família com um poder aquisitivo alto precisa mandar a garota a pé?
— Por que acha que eles tinham dinheiro?
— Ah, mãe! Se eles pagam mais por menos é porque podem, né? Em todo o alimento em que se retira algo da composição aumenta-se o preço. Sem açúcar, sobe uns 20%; sem lactose, uns 40%; sem glúten, então… Deve ser a aplicação da máxima “menos é mais”. Vai saber.
— Tá bom, filha. Eles tinham grana, mas ela não quis ir de táxi…
— Sem essa de poluir o ar! Podia usar a bike.
— Tá! — respira fundo a mãe —. Mas ela foi a pé. Andar é ótimo. E não corre o risco de atropelar nenhum bichinho na floresta — afirma, um pouco irritada, mas querendo demonstrar que também era politicamente correta.
— Legal! Continua.
— Bem, a mãe da menina disse para ela não pegar o caminho da floresta para não se perder e…
— Ué, o celular dela não tinha GPS?
— Não, não tinha — responde a mãe sem esconder o aborrecimento. — Aliás, ela não tinha celular. Era muito pequena pra isso, entendeu?
— Puxa! Não tinha acesso aos joguinhos.
— Ela brincava com outras coisas. É possível se divertir sem um celular, viu Gabriela? Posso continuar? Pergunta quase ríspida.
— Tá. Continua sua história.
— Você tá achando que é história minha ela não ter celular, menina? Pois vou repetir: criança pequena não precisa de celular, compreendeu? — diz, irritada e pensando: “Amanhã é a vez do pai. Tô fora!”
— Calma, mamãe! É que tô achando a mãe da Chapeuzinho megairresponsável. Não protege a filha do Sol, solta ela na rua sem nenhum meio de comunicação…
— Não! Ela não é irresponsável. Mães só querem o bem de seus filhos — afirma quase chorando. E despeja de uma só vez:
— Ela não queria a filha com a cabeça enfiada em um aparelho, sem interagir com quem está próximo para dar atenção a quem está longe ou, pior, viciada em um jogo qualquer.
Respirou fundo, se recompôs e perguntou: Posso continuar?
— Pode.
— Bem, a mãe avisou a Chapeuzinho para não falar com nenhum estranho…
— Caramba! Quanta repressão! Não tem celular para falar com amigos e não pode falar com estranhos. Não é à toa que ela visita tanto a vó.
— Escuta a história, Gabi! Vamos lá: no meio do caminho, apareceu um lobo. E, antes que você pergunte, não era um lobo-guará…
— … que corre o risco de ser extinto.
— Exato! Era um lobo comum, mas muito esperto. Chapeuzinho, desobediente, conversou com o lobo e contou para onde ia. Ele, então, sugeriu que ela colhesse flores para levar junto com os doces. E, enquanto a menina se distraiu com a tarefa, correu para a casa da velhinha.
— Uau! Ele queria roubar a avó?
— Não. Ele queria com… Ele queria devorar a velhinha — respondeu a mãe preocupada com as palavras. Não queria nada ambíguo, já que estava achando a filha esperta.
— Uau! E aí? — perguntou a menina, aflita.
— Aí, ele engoliu a velhinha, vestiu a camisola e se deitou na cama, fingindo ser a vovozinha. Ficou esperando Chapeuzinho chegar para atacá-la também.
— Ué? Se ele queria pegá-la, por que não fez isso no bosque?
— É que… Bem, errr… Gabriela, nós não combinamos que você ia ajudar a contar a história? Pois chegou sua vez, continua daí.
— Bom, mãe… Acho que o lobo não fez nada no bosque por causa das câmeras de segurança. Não queria ser pego em flagrante.
— Muito bom! — incentivou a mãe, já mais calma e pensando em usar mais vezes a tática de incluir a menina na narrativa. E retomou a narrativa:
— Bom, quando Chapeuzinho entrou na casa da avó, notou que ela estava diferente, com o rosto modificado. Desconfiada, começou uma série de perguntas sobre sua aparência. Segue você, Gabi — pediu a mãe.
— Chapeuzinho, então, perguntou: “Vovó, por que esses olhos enormes? É efeito do botox? E essa boca tão grande? Fez preenchimento? Quanto pelo! A senhora nunca pensou em fazer uma depilação a laser?
— Para, filha! Para! Chapeuzinho é uma menina, não se preocupa com tratamentos estéticos.
— Pô, mãe! Sinceramente, essa garota é muito bobinha. Quem, hoje em dia, não liga para aparência?
— Você tem razão. Chega de narrativas sobre meninas. Vou contar a história de uma moça e de como sua beleza causou inveja na madrasta. Prepare-se para conhecer Branca de Neve, a bela que desmaiou após comer uma maça…
— Era orgânica?