(Por Cláudia Sendra)
Ter irmão mais velho foi determinante na minha vida. Fora tirar perna de grilo e outras ocupações do gênero que compartilhávamos no jardim de casa, as coisas dele sempre foram mais legais. Ele podia tudo, e ainda por cima brincava na rua, enquanto eu tinha que passar horas intermináveis esperando minha avó desembaraçar meu cabelo, que ía até a cintura, ao mesmo tempo em que prenunciava o lugar espremido reservado pra mim no mundo. Foi pressentindo essa injustiça, mas mais porque o forte apache do meu irmão era muito melhor que boneca, que decidi, por volta dos quatro anos, que só ía usar roupas de menino – as dele.
Na porta do Jardim de Infância, minha mãe explicava, constrangida, que tinha tentado de tudo, e entregava para a professora o meu uniforme de menina. Quem sabe eu mudaria de ideia ao longo da tarde. Vã esperança. Eu ouvia aquilo impávida e adentrava a escola tropeçando com as botas do Batman, bem maiores que meus pés.
Foi com elas que corri descabelada pela adolescência e, mesmo na vida adulta, calcei essas botas mil vezes. Mas aconteceu que um dia esqueci que tinha as botas. E esqueci de novo e de novo. E anos depois, quando eu precisava muito delas, eu já não sabia aonde tinham ido parar. Tive muita vergonha de mim. Havia perdido o que me permitia flanar pelo mundo. Sem perceber, fui colocando o uniforme.
E foi preciso percorrer descalça muita estrada de terra, pisar pedregulho, areia escaldante, calejar até vislumbrar de novo o que me levava a mim. Hoje, logo que acordo, amarro bem forte essas botas nos meus pés. Ando mantendo o passo firme e fico atenta às minhas bases. Quem olha de fora vê salto alto, vestido e colar – representações que, inevitavelmente, levo comigo. Mas, por dentro, estou saltitando feliz com meus cambitos bem guardados pelo homem-morcego.
Foto: Google Imagens.