Sim, sou apaixonada pela História. E por mil e uma historietas que pontuam o prosaico cotidiano. Eventos e fatos que – quando e se – coletados pelos historiadores podem vir a ser objeto de pesquisa ou engrossam o acervo dos contadores de histórias. Narrativas – orais e escritas – bordadas na tapeçaria da História Oficial ou escoadas para o filão dos folhetins, contos e lendas. Quando em mãos talentosas, transformam-se em literatura.
Neste 1º de março, atiçou-me o desejo de aqui contar (mais) uma história. Despida da pretensão literária. Mero relato. Mas, atesto-o eu, absolutamente verídico, incrustado no lado avesso da Grande História. Cenário? Europa, anos 40, século XX. Comecemos, pois…
Era uma vez, um menino nascido em Spalato, na Croácia. Miroslav Bilich – aí o seu nome – foi o primogênito do casal Francesco e Luigia. Graduando-se em Química, montou na capital, Zagreb, pequena fábrica. Mas, o espírito do tempo soprava agitação política e, em 1945, Josip Broz-Tito (1892-1980), líder comunista, galgou o poder. Com mão de ferro, enfeixou o mosaico etnico/cultural de eslovenos, croatas, sérvios, bósnios e montenegrinos. Desse caldo de cinco países, emergiu a Iugoslávia.
Entre os milhares de prisioneiros nos campos de concentração do regime, lá estava Miroslav Bilich. Acusado, por dois operários da sua fábrica, de ser “inimigo do povo” e adepto do regime parlamentar monárquico, recém-derrubado. Tinha à época, 35 anos.
Certa noite, com a cumplicidade das nuvens carregadas de chuva, esgueirou-se do alojamento e coleando-se ao solo, conseguiu atingir a cerca eletrificada. Rompido o arame farpado, o alarme disparou. Pôs-se o prisioneiro de pé, ofuscado pelos jatos de luz que jorraram dos holofotes ao soar da sirene. Impossível divisar a trilha segura, evitando as minas enterradas no entorno do campo.
Ao pisar num dos artefatos, estilhaçaram-se os ossos da perna direita. Tentando deter a hemorragia com as mãos, rastejou em fuga desesperada, sob rajadas de metralhadoras, até atingir o bosque. Aí permaneceu e, aos primeiros clarões da aurora, observou a estrada vicinal no fundo do vale. Rolou o corpo ferido montanha abaixo, imerso em dores lancinantes e hemorragia intensa.
Ao atingir a borda da estrada, exangue, mergulhou no alívio da inconsciência. Quiseram os deuses a ambulância da Cruz Vermelha por ali passasse. Mais: o motorista viu o corpo sanguinolento e imóvel. Freou o veículo. Constatou surpreso, o prisioneiro ainda respirava. Recolheu-o.
O fugitivo só recobrou a consciência após duas semanas, sendo informado que se encontrava no Hospital da Cruz Vermelha Internacional, em território italiano. Meses depois, o Estado do Vaticano providenciou-lhe documentação, que lhe permitiu deixar a Europa.
O “Lugano” aportou no Rio de Janeiro, em setembro de 1946. Em 12 de outubro – coincidentemente, dia e mês que Colombo descobriu a América – de 1948, deu-se o meu nascimento. Paternidade que conferiu ao refugiado político e apátrida o direito de pleitear nova nacionalidade: brasileira. Miroslav Bilich vivenciou duas vidas distintas numa única existência!…
Quando me perguntam sobre a paixão que nutro pela História e por mil e uma historietas do cotidiano, a imagem paterna aflora vívida à mente. E, com voz embargada e olhos lacrimejantes, respondo:
– “Amo, sim! Sou filha da História. Talvez, um dia eu lhe conte…
(1º de março de 2012)
Foto de família: 12 de outubro de 1949 – Miroslav e Jô Bilich e a filha primogênita, Jeanne, no aniversário de um ano.