A mão grande do poder público

Eduardo Selga(Por Eduardo Selga)

Imagine-se na seguinte situação: você, que sempre desperta cedo para o trabalho; você, cuja boa parte da vida é ou foi vivenciada numa mesma casa, num belo dia, ao chegar da labuta, constata que ela não está mais onde deveria. Atordoado, ponderando que construções arquitetônicas não possuem pernas, no máximo pilotis, tudo o que vê é a geometria oca do terreno, o que fora edificado com sacrifício simplesmente desapareceu. O que lhe sobra é a estupefação. E, em seguida, talvez, a depender da quantidade de anestésico que determinadas forças sociais conseguiram injetar-lhe durante toda a sua existência, a revolta.

Talvez você, leitor, esteja alinhavando ideias mais ou menos assim: ah, meu caro cronista, tenha paciência, isso parece enredo de literatura fantástica e, como tal, possível acontecer apenas no interior do espaço e do tempo ficcionais. Confesso, leitor: estou perfeitamente de acordo contigo quanto ao insólito manifesto com ares de irrealidade. Entretanto, reflexo do fato de estarmos vivendo uma contemporaneidade na qual os limites entre o absurdo e o factível se tornam cada vez mais delgados, a cena aconteceu numa das capitais do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro. Está bem, não foi exatamente conforme exposto no primeiro parágrafo, mas a dramaticidade foi a mesma.

Segundo reportagem de O Globo (02/06/2016), estava o senhor cidadão Jorge Arantes chegando à sua banca de jornal, situada na esquina entre a Avenida Rio Branco e a Rua Acre, como sempre fez há três décadas, quando se surpreendeu com o insólito: a banca não mais estava lá. O motivo? A Secretaria de Ordem Pública “identificou que a banca de jornal em questão permanecia fechada” e por isso foi devidamente recolhida “em depósito público”. Simples assim. Quase singelo.

Mas, tudo bem senhor Arantes, não se desespere, isso alguém sempre dirá e a Prefeitura o disse: o senhor tem apenas que indicar “outros três locais para onde a banca deverá ser remanejada. Após este procedimento, a Seop analisará o pedido”. Não é simples? No entanto, pensando bem, meu caro e ignoto jornaleiro, não temos hoje muitos consumidores de jornal, em tempos de páginas eletrônicas, vamos combinar. Não lhe fará muita falta alguns dias sem sua fonte de renda, portanto. Seja razoável com o poder público, ora essa.

Ser brasileiro é algo a respeito de que o indivíduo vai se dando conta aos poucos e, quando consegue boa clareza sobre essa condição, ele se enxerga como um sujeito suscetível a atos que, estando na dimensão da realidade, parecem ficcionais. Assim, é perfeitamente possível que uma aberração seja cometida sem mais aquela pela autoridade debaixo do sol a pino, prescindindo das sombras para fazer de nós uns boquiabertos. A mesma autoridade que deveria zelar pelo cidadão e pela cidadania.

Não falo apenas da violência física, modalidade mais visível e prática comum da Polícia Militar em bairros periféricos em todo os Brasis, mas chamo a atenção para a violência simbólica, que se espraia por quase todas as classes e segmentos da sociedade. Não raro essa categoria de violência passa despercebida, e o arrombamento, a invasão que ela representa, desfilam como se nada houvesse acontecido. Para muitos de nós, o que merece o adesivo de violento refere-se apenas à agressão física. E essa ignorância é uma violência e tanto.

Com a opção pelo concreto em prejuízo do abstrato, toda arbitrariedade na qual a agressão simbólica mostra suas garras fica invisível, em larga medida. E mesmo a violência mais evidente é absorvida com rapidez pela sociedade, como se estivéssemos num show do circo dos horrores no qual nova cena funesta tem lugar no picadeiro mal a anterior já emocionou o público e, portanto, cumpriu seu papel de espetáculo. É um ritmo de série norte-americana, e por ele estamos sendo tragados para o poço da alienação, onde não se consegue discernir os vínculos entre os fatos e tudo parece sem causa e sem consequência. É como se os fatos brotassem da terra, caíssem do céu, ou magicamente, surgissem aos nossos olhos.

Você, prezado leitor, como se sente ao ser apresentado ao confisco arbitrário da fonte de renda do senhor Jorge Arantes, nosso amigo jornaleiro? Pergunto isso porque a alegação da autoridade é que a banca estava obstaculando a passagem do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), que a essa altura decerto já foi inaugurado. Vá lá que fosse, mas não se pode tomar de assalto a casa ou a fonte de renda honesta de alguém sob esse pretexto ou qualquer outro. Cabe ao poder público encontrar uma solução razoável, negociando antecipadamente com a pessoa cujo negócio ou residência “atrapalhe o progresso”.

Abusos assim, concretos e simbólicos, acontecem todos os dias em todas as esquinas e reentrâncias do Brasil porque o poder público, de um modo geral, mantém a prática medieval de cavar fossos entre ele e o cidadão, como se este estivesse infectado por alguma doença incurável e contagiosa. Uma das razões para esse hábito entendo ser a seguinte: se prefeitos, para ficarmos na esfera municipal, começarem a “dar ideia” para o “populacho”, este perceberá em três tempos que o poder não é do prefeito, e sim dele, povo; que o Executivo municipal não é uma entidade abstrata em sua condição de representante e administrador do município: sua concretude se dá nos atos em prol do representado, a população. Se houvesse alguma vizinhança efetiva entre prefeituras e munícipes, barbaridades próximas à ficção, como o caso do senhor Jorge Arantes, quando acontecessem, não passariam em brancas nuvens: haveria a indignação e o pasmo de todos.A mão grande do poder público

 

Foto: Jorge Soares

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