(Por Eduardo Selga)
Chegue aqui, leitor, deixe-me contar uma coisa em segredo para você não contá-la a mais ninguém.
Não acredito que exista alguém já saído da infância, hoje no Brasil, que não tenha sido vítima, e até bem mais de uma vez, de dissimulado predador, a fofoca, em uma de suas três probabilidades conforme eu, abusada e insuficientemente, de agora em diante a classifico: a silenciosa, semeada via cochicho; a barulhenta, via “barraco”; a cínica, cujo ecossistema é a ironia ou sarcasmo descontraídos e entre amigos, às vezes com a vítima presente. No primeiro e no terceiro espécimes o caráter insidioso não é tão nítido quanto no segundo, mas os níveis de perversidade e de covardia são diferentes. Assim:
Quando a fofoca é expressa de uma pessoa para outra, normalmente com o fatídico “não espalha; é segredo…” a autoria está declarada, e se o novelo da trama for desenrolado (e em alguns casos, haja sangue-frio para isso!) é possível chegar a quem principiou o boato ou a indiscrição com alguma facilidade.
Com o cinismo maquiado pelas sombras do humor, ao contrário, isso é bem mais difícil, porque embora decerto exista um artífice, a entrelinha de suas palavras funciona como um manto, escondendo essa autoria de modo que muito dificilmente se chega ao linguarudo de modo inequívoco. E mesmo que seja alcançado, ele certamente refutará, muito surpreso e sonso: “eu?! Como assim?…”.
Nesse sentido há “vantagem” na fofoca barraqueira: seu autor não faz o mínimo esforço para esconder-se ou mascarar as palavras, logo, é mais fácil a defesa ou o contra-ataque, nem que seja “dar na cara” de quem falou demais ou armar outro “barraco”.
Não passa de fofoca o senso-comum de que a fofoca é por definição característica feminina. Ocorre que a prática de escolher com premeditação episódios verdadeiros da vida alheia, ou inventar outros, e segredá-los a ouvidos terceiros, pôr às escâncaras e traiçoeiramente atitudes de outrem, faz parte de um dia a dia competitivo ao qual estamos todos submetidos nesse modelo de sociedade. Isso independe de gênero. Prejudicar, inviabilizar o outro de algum modo em determinados contextos sociais pode ser muito útil a quem usa, todo língua e dentes, a navalha da fofoca.
Com maior ou menor grau de sutileza somos cobrados diuturnamente quanto à nossa competência na vida, beleza física e outros atributos, o que pode nos sugerir a necessidade de chutar para escanteio um ou outro competidor, real ou imaginário (aliás, por que a existência tem de ser uma corrida de cem metros rasos?). É uma maldadezinha justificável, pois, todos nos dizem ou insinuam, o importante é o fim, sempre glorioso e exemplar, não essa coisa enferrujada e improdutiva de ética dos meios.
Com isso não estou dizendo que a fofoca seja parte de uma suposta natureza do Homem, necessariamente perversa. Eis aí, parênteses, outro senso-comum bastante difundido entre nós e alimentado de muitas maneiras. Essa percepção do ser humano enquanto criatura caída na lama, com a qual não concordo, entendo ser uma das heranças cristãs que absorvemos em terras brasileiras e latinas. Prefiro acreditar que a maledicência da fofoca não possui vínculo com um hipotético pecado de origem, e sim com algo muito mais mensurável: essa mefistofélica engenharia social da competitividade entre os sujeitos.
Nossas casas e casebres, ruas e becos, estão todos não apenas num bairro, numa cidade: principalmente se incluem no Estado, a estrutura político-administrativa de instituições articuladas de modo a organizar o funcionamento do país e controlar seu povo. A vida do sujeito nas muitas territorialidades objetivas e subjetivas inseridas no território nacional é, portanto, regrada por leis emanadas desse Estado, e por uma série de instrumentos que vigiam as atitudes do corpo, a exemplo da polícia, e pressionam o pensamento e até as emoções, como a escola. O que de resto é uma lástima, pois não era meu objetivo, a princípio, qualquer sisudez nessa crônica.
Apesar disso, temo ser necessário manter a carranca verbal nas próximas linhas. Culpa do Estado, é claro, bem mais sutil que o emaranhado de apetrechos coercivos de que dispõe, relativamente manifestos, relativamente escusos: ele se entranha no próprio sujeito, e este passa a exercer uma espécie de patrulha do comportamento alheio, de modo que o outro não fuja ao instituído nem tanto pelos artigos, parágrafo e cláusulas da lei –muito mais pelo invisível do establishment, que organiza a tradição.
É nesse ponto que entra em cena a fofoca. O sujeito não apenas a usa como patrulha social, normalmente sem se dar conta disso, como também instrumento para conquistar cascalhos de glórias, particulares e mesquinhas. O sujeito funciona, no primeiro sentido, enquanto agente do Estado, tentando de algum modo obstacular, por exemplo, a atitude homoafetiva, o exercício da solidão (a regra tácita é o convívio ininterrupto), o agnosticismo (a norma diz que a crença em Deus passa necessariamente pela prática de alguma religião) e outras transgressões explícitas a regras implícitas.
O cidadão-polícia, quando para si mesmo reconhece a sordidez, o faz sempre parcialmente, a menos que seja, além de fofoqueiro, sádico: ele tem na ferocidade social, que o mastiga vivo, ótima desculpa. Por isso busca os mínimos extermínios do outro. Mas o faz não para não ser destruído, na medida em que, de um modo ou de outro, todos somos – e sabemos disso, ao menos instintivamente –, mas porque ele é destruído todo o santo dia e paulatinamente. Ou seja, o outro não é escudo para o cidadão-polícia, é sua presa. Ele que, cego dentro da estrutura, também é prisioneiro.
Talvez essas palavras sejam um tanto erráticas, mal humoradas em demasia, não correspondam à realidade. Então… cá entre nós, por favor não espalhe isso, prezado leitor. Sem cochicho, “barraco” ou cinismo. São apenas desconfianças que eu tenho sobre essa prática absolutamente condenável que é a fofoca.