Fui gerada por uma ovelha negra. Ela cabeceava no curral e ficava presa no cercado quando tentava fugir. Foi tosada e castigada por anos. Não tinha bons modos. “Onde já se viu ovelha querer ser gente?” — questionavam alguns. Mesmo assim, quando nasci, fui batizada para seguir o rebanho, como ensinado pelos pastores. Mas, antes de entrar para tosa, e descobrirem as manchas pretas na minha pele, eu fugi.
A pinta de nascença, escancarada na ponta do meu nariz, podia passar despercebida por muitos, mas não para a minha mãe. Eu me sentia e ainda sinto desgarrada do rebanho convencionado “mulher”. Percebendo a imagem refletida na cria, até pouco tempo atrás, a ovelha que me pariu berrava:
— Escute aqui! Você tem escolhas. Siga os seus sonhos e não deixe que nada tire o direito de você sonhar. Nem mesmo eu. Crie asas, se for preciso, e voe para bem longe daqui. Eu vou fazer de tudo para que você saia daqui. Quando sair, não olhe para trás, ainda se eu gritar para você voltar. Mantenha-se lúcida se receber uma paulada. Se alguém quiser proibir você de fazer algo, lembre-se: primeiro você. Antes, os seus sonhos. Realize-os.
Eu não fazia ideia do que minha mãe estava dizendo quando eu ainda era uma criança.
— Seja fiel a você antes de se comprometer com alguém. Se um dia pensar em casar, vá viver longe de mim. Mas crie o seu próprio caminho. Mantenha seus objetivos e sonhos. Realize-se e continue com o pé no chão, sendo você mesma, ainda quando compartilhar o espaço com o outro. União é soma, não subtração. Casamento é escolha. Sua felicidade depende de você.
Ouvi isso quando me preparava para fugir. Obviamente, cabeceei pelo curral com as demais ovelhas e sangrei na cerca quando escapei. Queria ser diferente daquele grupo e pastar livre em outros campos. Selvagem soa melhor que domesticada, acredito.
Saindo da metáfora ovelha e carneiro, pelo comportamento da maioria das mulheres da minha família (brancas, pretas, amarelas, azuis…), e pela tradicional sociedade hétero, branca e máscula, sabia que meu caminho deveria ser outro. Era uma necessidade sair daquele rebanho, daquele meio.
Quando você “escapa” de algo e olha para trás, dói. Durante anos, carrega uma culpa imaginária porque ter sido apedrejada. Sente dores na cabeça, nas costas e nos ombros. Todavia, as frestas nas cercas estarão sempre em algum lugar. Foge quem insiste e se rasga nos arames farpados, jogando-se no verde.
A gente se perde e demora um tempo para visualizar o caminho. Nesta nova jornada, percebe ainda continuar diferente da maioria das ovelhas dos rebanhos encontrados pela trajetória. No meu caso, quero dizer, mulher.
Numa dessas conversas-desabafos entre amigas de anos — nos denominamos, carinhosamente, “Amigas Ohana”, moças dos tempos de apartamento em época de faculdade e, hoje, espalhadas por aí —, observei não ser a única sentindo-se meio “alienígena” no meio feminino. O sentimento “peixe fora d’agua” é comum a outras amigas, colegas ou conhecidas. Entretanto, esse grupo é bem pequeno.
Veja bem! Antes de você continuar esta leitura, devo dizer: respeito as suas escolhas, porque nossas diferenças nos reforçam, nos alimentam enquanto serem humanos e nos fazem repensar nossos comportamentos em sociedade. Sou o que sou pelas experiências enquanto espelho e reflexo do outro. Quero — e continuo sempre querendo — aprender. O conhecer a si mesmo é uma estrada de obstáculos para serem superados cotidianamente.
Pois então, quando escuto mulheres proclamarem com tanta veemência “Meu marido é isso”, “Meu marido é aquilo”, “O homem da casa”, “Ele é homem, tem que me sustentar”, “Quero um homem rico para me bancar”, “Meu marido”, “Meu marido”, “Meu marido”…, observo e busco compreender essas definições de homem com H maiúsculo.
Quando posso, meio pisando em ovos, pergunto: “Ok! Que ótimo que você sabe quem é o seu marido, o seu homem. Mas, quem é você sem o seu marido? Quem é a mulher que habita em você? Quem é você, de fato? Quais os sãos os seus sonhos? Qual o seu verdadeiro propósito na vida?”
Sim, expresso algo que tem muito a ver com a união de duas pessoas, independentemente de sexo, religião ou nacionalidade. O matrimônio é um símbolo da escolha por alguém que compartilha do seu caminho com respeito e igualdade. E, assim, juntos, talvez gerem frutos que possam modificar o tradicional modelo de que é o homem quem deve ser presente, ouvido e apresentado em primeiro plano.
É comportamento enraizado e multiplicado pelas próprias mulheres, educando filhas para serem validadas a partir de um homem, serem dependentes do sexo masculino. Como se a felicidade, o caráter, a posição social e o respeito de uma mulher dependessem do homem com o qual ela está.
Acredito que as palavras “esposa” e “marido”, assim como tantas outras, foram banalizadas pelos anos por terríveis adjetivos como submissão e superioridade. Opa! Alguém pode gritar: “Feminista!”
Bom, que tal Chimamanda Ngozi Adichie para expressar muito bem a palavra feminista pelo vídeo do TEDx Talks “We should all be feminists”: “Todos nós deveríamos ser feministas”, numa tradução livre? O link está ao final do texto.
Quando compartilhei o discurso de Adichie com as amigas Ohana — as quais considero minhas irmãs, exatamente por, apesar de sermos tão diferentes umas das outras, ainda assim buscarmos sempre respeitar aquilo que somos de verdade —, aplaudimos a autora de pé.
Sabe? Posso dizer ser uma feminista daquelas que depilam as axilas e outras partes do corpo. Daquelas que mostram as pernas. Minhas cicatrizes? Óh! Há tatuagem mais única e original que uma cicatriz? Pois bem, passei admirar as minhas “tatuagens” esculpidas pela vida e mostro sem vergonha para quem quiser ver.
Prefiro maquiagem bem ao natural, conforme meu humor. Gosto de me vestir bem. Uso sutiã. Calço sapatilhas. Na cidade, posso pedalar de vestido e salto alto. Ah! E você não vê a cor da minha calcinha. No campo, quando me encontrar descabelada, suja de terra, simplesmente vou ajeitar o avental, lavar as mãos ir para cozinha preparar um prato de pasta com tomates e manjericão, colhidos da horta cultivada por mim.
Também discuto a posse do controle da TV, argumentando com o parceiro que, no domingo gelado e chuvoso a Formula One está muito mais interessante do que o jogo de futebol do time nacional. De fato, depois de Ayrton Senna, é bom ver um novo prodígio nas pistas. Aham! Também gosto de futebol. Pelé e o falecido Cruijff são bons exemplos de originalidade. Gosto de assistir jogos de rugby, jogo onde “brutamontes” comportam-se como verdadeiros gentlemen, cavalheiros: “Yes, Sir!”
Cresci com José Hamilton Ribeiro, no Globo Rural. Despertei com Eliane Brum. Quis descobrir a Europa, ganhei a América, a África e outros continentes. Conheci ao vivo as heranças de Michelangelo, Van Gogh e ainda continuo encontrando com a turma do passado.
Sou grata a Oprah Winfrey por ser um exemplo de mulher. Sigo os conselhos de Maya Angelou, como senhora e avó. Respeito Michaela DePrince. Gosto de rir com Ellen DeGeneres. Às vezes, vejo o programa do Humberto Tan. Fico encantada com as viagens da Floortje. Assisto os vídeos do Porta dos Fundos. Prefiro o jornal da manhã. Se ligo a TV, sintonizo com a programação local do país em que estou. Desligo a TV.
Gosto de ler livros, seja o que for. Claro! Tenho as minhas preferências. Leio revistas femininas, masculinas, quadrinhos, jardinagem etc. Assisto programas de esporte, de moda…. Frequento festivais de cinema e feiras de tudo a que posso ir. Tenho carteirinha de museu. Possuo identificação internacional de jornalista — mas, só para observar, ouvir e contar histórias.
E daí? Sou ser humano. E sou (im)perfeita nas minhas imperfeições.
Quer saber? Sou filha. Mulher. Companheira. Cidadã do mundo — gosto deste termo. Corajosa. Feminista. Grande. Delicada. Forte. Pequena. Sensível. Vulnerável… Como me disseram uma vez, “sabemos muito bem que, se intimidamos um homem com as nossas opiniões, estamos seguras de que ele não serve para ser o nosso parceiro”.
Amor significa companhia, fidelidade, honestidade e respeito. Medo de alguém com sonhos e vontades próprias é insegurança e resistência por não aceitar o outro como ele é. Todos sabemos: não existe relação perfeita! É um processo de aceitação, adaptação, compreensão, cooperação e sintonia. Primeiro, consigo mesmo; depois, com o próximo. Antes, você, seus sonhos. Esta é minha lição. Quero dizer, este é o ensino que apreendo todos os dias.
Escuto, por homens e mulheres: “Não é todo mundo que deixa o marido sair nas sextas-feiras para beber com os amigos.” Agora, observe comigo: ter as sextas feiras livres — ou quaisquer outros dias da semana — para o homem tomar cerveja com amigos e falar de futebol é a mesma sexta-feira para a mulher fazer o que quiser: tomar cerveja, conversar sobre futebol, curtir um cinema, ir ao teatro, acompanhar um balé, participar de um concerto, beber vinho, jantar com amigas; tagarelar besteira, discutir religião, debater política, pensar na economia, aprender sobre moda, odiar os sintomas da TPM e mandar tudo e todos irem para o quinto dos infernos…
E, em algumas dessas sextas, também sair com o parceiro no grupo de homens. Ninguém vai ter receio de medir as palavras com você porque estarão todos no mesmo nível, ao menos naquela roda de conversa à noite — ainda que alguns sejam descaradamente machistas.
Mesmo dentro do molde social “meninas” e “meninos”, somos livres para fazer nossas escolhas — isso, nos países que se dizem “democráticos”. Qualquer tipo de relação começa a partir do respeito e comprometimento com nós mesmos. Compartilhamos ideais por direitos iguais. Apoio emocional, suporte financeiro e encorajamento nos momentos de necessidade podem vir de ambas as partes.
Dias desses, fui lembrada: “Recebemos aquilo que, conscientemente ou inconscientemente, acreditamos merecer receber”. De fato, somos resultados das nossas escolhas. Para sabermos quem somos, basta penetrarmos em nós mesmos. É um grande desafio se olhar no espelho e se enxergar, sem um pingo de julgamento.
Para amizade, amor, companheirismo, dignidade, humildade, parceria e respeito não há gênero sexual. Por que, então, não tomar conta dos próprios passos? Que tal pagar a sua despesa no restaurante e deixar que ele pague a dele? Claro! Uma hora, pague a de vocês dois; outra hora, deixe ele também pagar por ambos. Convenhamos: não há nada demais em ratear os custos de um jantar, né?
É legal deixar uma gorjeta para quem lhe servir à mesa. Olhe nos olhos dele, ou dela, porque você é o reflexo dos dois e seu comportamento e atitude serão espelho deles. A lição pode ser grande quando você presencia os dois lados, de quem serve e de quem é servido.
Educação, gentileza e paciência, mesmo que a pergunta sobre o vinho ou a conta sejam direcionados ao “homem da mesa”, é praticamente um processo de gratidão. Quem sabe assim percebam que, tanto faz, todos nós deveríamos ser feministas?
E sim, claro! Sou grata aos meus pais por serem os maiores feministas que conheço. Mesmo quando nem sabiam o significado desta palavra, me deram o maior presente que uma feminista pode receber: educação.
Pois bem, para o próximo dia de Ação de Graças e semana em que completo 35 anos, a palestra de Adichie ainda é um valioso presente para ser comemorado.
Novembro de 2016
Ilustração: Pointes de lances, obra de Francesca Gagliardi, 2013. Mais informações em http://www.francescagagliardi.com
Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.