João Cabral de Melo Neto, em momento particularmente feliz pela força imagética, poetiza: “Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos”. Ou seja: um transmite a outro a boa-nova — o dia que já ameaça fazer-se presente —, repassa a notícia adiante e por esse meio, pela toada, a manhã e o próprio dia adquirem existência de fato. A teia sonora constrói a alvorada como uma “luz balão” sob a qual todos têm espaço.
Agora, ao escrever esse texto, me ocorre um efeito colateral: o sono acaba de subir no telhado ou talvez tenha se escondido de mim debaixo da cama, e estou sem a menor disposição de tirá-lo da toca ou de convencê-lo a abandonar a companhia das telhas coloniais. Uma hora ele cansa e resolve me abraçar. Enquanto isso, na tentativa de ouvir o zum-zum-zum do silêncio, a madrugada é rompida por latidos que começam poucos, mas paulatinamente vão ganhando adesões e se tornam um enorme tecido sonoro, vestindo uma espécie de camisa de força noutros possíveis sons.
É bem característico desses animais de rua o efeito avalanche, o instante em que, a partir de um indivíduo particularmente saudoso do passado da espécie, se lembram de que hoje são apenas lobos sossegados, e é como se quisessem readquirir a selvageria, reagrupar a alcateia, renegar a cidade, suas ruas, suas gentes. Acaso formassem uma civilização, tal comportamento seria um arquétipo.
Por causa deles, meu sono, um gato sem qualquer senso de humor, a toda a hora assustado com pouca coisa e que ignora o ditado popular “cão que ladra não morde”, permanece no telhado, ou no negrume existente sob a cama. Sua obstinação parece maior do que a de costume, a julgar pela intensidade da insônia.
Os latidos multiplicados e sobrepostos muito me lembram vidraçarias partindo-se estrondosamente por obra e graça de uma superfície maciça qualquer, e me cortam os tímpanos, assim como me importuna o tricotar dos galos, essas comadres a repetir todas as manhãs a mesma arenga, o mesmo alinhavo. Daí a lembrança de João Cabral de Melo Neto, considerando a quase manhã que entra pela janela não em forma de luz, e sim de uma claridade que é embrião ainda.
Há, no entanto, uma diferença essencial: enquanto os galos são costureiros, amarram pontas e lançam outras no ar, os cachorros embaraçam o novelo da madrugada, o que, inclusive, dificulta a tarefa dos galos, horas depois. Ao contrário do trabalho linear e arquitetônico das aves de terreiro, os lobos fora de lugar apregoam o caos nas ruas abandonadas à própria sorte.
Quando a ladraria tem início e rapidamente ganha volume, quase nunca por motivo que valha tanto escândalo, parece-me que as ruas se sentem sequestradas, medrosas à espera do retorno do silêncio para que possam continuar em sua característica solidão, no interior da qual refletem profundamente sobre o dia que virá.
Mas os cães não se interessam pelo pensamento: agem por impulso, decerto querem rasgar as ruas e tudo o que pareça urbano e civilizado, de modo a convertê-las, ao menos simbolicamente, à floresta ancestral de que têm tantas saudades. Uma nostalgia, por assim dizer, lusitana. A janela abre espaço não apenas para a quase luz de que falei antes: também entra o cheiro do medo que as ruas exalam a partir de suas bocas-de-lobo.
Felizmente os galos sempre trazem à luz as manhãs. Mesmo porque os cachorros de rua se cansam da peleja inútil do histerismo, do desespero, e, esgotados — porém felizes —, não lhes resta outra opção exceto ver e ouvir, talvez com uma ponta de rancor pelo senso de harmonia dos galináceos, a arquitetura da manhã, “toldo de um tecido tão aéreo”, como nos versos de João Cabral de Melo Neto.
Ouço os primeiros cocoricós do dia a partir do instante em que o último grito de cachorro guarda silêncio. É a senha. Meu sono, sedoso, se aproxima e se esfrega, querendo, após abandonar-me aos cães e a tessituras, cavar um espaço em minha cama. Cheio de manhas.
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