(Por Cecília Ribeiro)
Após uma longa pausa das caminhadas na praia e mais de sete meses enclausurada sem contato humano, decidi: estava na hora de voltar a praticar alguma atividade física. A emergência de se exercitar mesmo em tempos de quarentena, apesar de óbvia para alguns, não era suficiente, por si só, para desencadear uma ação de minha parte.
Mesmo depois de tanto tempo só andando da sala para a cozinha, eu me sentia impedida de me movimentar para além dessas fronteiras; era como se houvesse uma parede intransponível ao redor do meu prédio. Nesse sentido, além de toda a problemática imposta pela circunstância da emergência de saúde, o problema advinha do conforto proporcionado pela rotina e a sensação de segurança por estar trancada neste grande bunker pós-apocalíptico no qual se tornou minha casa.
O estopim necessário à mudança foi então, o (quase) convite feito por uma amiga para caminharmos, vez ou outra, no calçadão da praia. “Quase” porque a ideia surgiu do nada, sem nenhuma formalidade, e, até então, sem nenhuma verbalização do convite.
Em uma conversa na minha casa, ela havia me contado os seus planos de treinar para um teste de aptidão física, fase de um concurso público da qual ela participava, e havia desabafado sobre a necessidade de realizar alguma atividade enquanto não fosse possível se inscrever numa academia.
Após ouvir a tocante história sobre o seu condicionamento físico e seus objetivos para com o teste, eu me predispus: “vou com você”. A minha satisfação em pronunciar essas palavras residia no fato de que, além da saudosa emoção de estar me movimentando, ainda apoiaria uma importante decisão de minha amiga.
Tamanho foi o meu contentamento e a minha animação em pensar na brisa do mar no rosto e outros rostos desconhecidos me atravessando, enquanto percorria o calçadão. Felizes e entusiasmadas, combinamos a periodicidade de nossas caminhadas, iríamos pelo menos uma vez por semana juntas.
No primeiro dia, essencialmente fatídico pela sua simbologia, arrumei-me com empenho: pus as melhores roupas, amarrei o cabelo bem no topo da cabeça e escolhi, de forma criteriosa, a máscara que melhor ornava com o look. E então me dei conta de um erro gravíssimo, no qual eu ainda não havia pensado: a máscara.
Como o objeto faria parte do contexto? Sua função, a de proteção, não estaria prejudicada pelo meu bom desempenho na realização da atividade? Preferia eu morrer esbaforida ou retirá-la, caso tivesse problemas em respirar? As questões eram muitas e eu ainda não pensara em todas. Resolvi deixar de lado os receios e tratei-a como qualquer peça de roupa, caso algum imprevisto ocorresse, o meu corpo saberia como reagir. Grave erro.
Serelepes, descemos as escadas e alcançamos a rua. Porém, conforme nos aproximávamos da praia, o fluxo de pessoas passando por nós aumentava, assim como a minha ansiedade. Dobramos a esquina e nos deparamos com uma cena assustadoramente habitual: uma multidão de pessoas enfeitava o calçadão.
Crianças e seus pais, jovens esportistas e idosos em forma, todos corriam ou se exercitavam nos aparelhos dispostos ao longo da praia. Aqueles que caminhavam num ritmo mais compassado usavam máscara, já a maioria dos corredores afincos optou por fazê-lo sem a peça.
Iniciamos nossa caminhada, mesmo receosas com a aglomeração de pessoas. O vento era forte naquele dia e a brisa do mar chegava às minhas narinas geladas. Feliz, sentia-me realizada e em paz em estar fora de casa. Somente quando olhei à minha volta tive outra percepção daquele momento – todas aquelas órbitas oculares olhavam-me, de forma profunda e interessada, através de intimidantes máscaras.
Nunca antes havia me sentido tão observada em local aberto, sobretudo em um momento tão intimista pelo qual passava. Intrigada, comentei com a minha amiga a minha estranheza. Ela, por sua vez, foi enfática em discordar de mim – “ninguém está te olhando, relaxa”. Mas nada me convencia do contrário, todos me observavam como nunca antes haviam observado.
Comecei a pensar, então, em qual seria o motivo de tantos olhares, eram flertes ou minha roupa estava rasgada? Tinha eu vestido minha máscara errado? A agonia foi aumentando. Surpreendentemente, mantive minha postura e me obriguei a olhar para o chão, mesmo ficando cada vez mais difícil de respirar devido ao desconforto com o pedaço de pano no meu rosto.
Completamos os dois primeiros quilômetros e me sentia cada vez mais capaz. Foquei encontrar uma resposta para o fenômeno observado, a fim de passar o tempo. Depois de muita reflexão ao longo do caminho, cheguei a algumas conclusões.
Embora ser observada fosse estranho e amedrontador, tinha lá sua pontada de exibicionismo naquilo. Além do mais, a saudade de encarar o rosto da multidão era grande embora atualmente perigoso, e eu conseguia sentir satisfação com isso.
O experimento pelo qual passamos é algo inédito e certamente desafiador. Quando confinamos por muito tempo os seres humanos e os mantemos longe um dos outros, coisas estranhas passam a acontecer quando eles se encontram.
Embora esses fossem pensamentos profundos, naquele momento, fui obrigada a deixar de lado a reflexão e a me concentrar no exercício. Ademais, as pessoas começavam a reparar os meus olhares bisbilhoteiros e questionadores para elas.
Foto da capa: Cláudia Ladeira