Meu pai, nos tempos em que fui menino, e quando seu bom humor não tinha o mesmo tamanho escancarado de hoje, às vezes me contava uma estória da qual, decerto movido por razões ocultas na subconsciência, agora me lembro. E ela me parece hoje muito mais divertida do que era antes, quando narrada pelas palavras dele. Provavelmente por causa de outras conexões que só agora, taludinho, consigo fazer. É mais ou menos assim:
À volta de dois repentistas se formava grande número de espectadores, divertindo-se com a notória competência de um e a anemia artística do outro, impiedosamente “surrado” pelas rimas do adversário. O sol machucava a praça do lugarejo no interior do Espírito Santo, mas ninguém arredava pé, amparados com alguma eficiência por chapéus de todo o tipo e por sombrinhas coloridas.
Em determinado momento, o contendedor mais engenhoso findou sua estrofe com os versos “se a catacumba se mexeu”, diante do que o outro se abalou visivelmente. Não se tratava de apavoramento ou crendice: é que o adversário terminou de modo inesperado seus versos, motivo pelo qual não conseguia pensar numa continuidade razoável. Ficou dedilhando a viola enquanto olhava em torno, como quem pede socorro, procurando uma saída.
Alguém da assistência, abandonando por um minuto sua atenção ao mal disfarçado tormento do cantador, perguntou com voz um pouco elevada a um pequeno grupo próximo dele: “ô gente, cadê Antero?”.
Foi a salvação da lavoura. Mesmo não produzindo qualquer efeito de rima, o violeiro achou por bem repetir a frase ouvida. Ao menos “soava bem” e com ela poderia ganhar mais alguns instantes. O resultado é que o povo gostou tanto que ele ficou a repetir, agora acompanhado de risos, palmas ritmadas e vozes em refrão: “se a catacumba se mexeu, ô gente, cadê Antero?”. O sentido do conjunto? Ora, o sentido…
Tudo isso até agora, escrito para dar ao leitor a falsa sensação de que ele terá diante de si um conto do início ao fim, é para ilustrar algumas observações sobre uma prática que jamais foi nova, mas que presentemente adquire importância ímpar no tecido social: o hábito de falar “de orelhada”, repetir determinado discurso porque de alguma maneira é convincente ou acaricia a percepção de mundo admitida pelo ouvinte, seja ela míope ou idealizada.
Se prestarmos a atenção devida, veremos em nosso cotidiano a existência de quem se assemelhe a personagens que se sustentam em chavões verbais, comuns em programas televisivos. Esses bordões, mais do que mera e infinita repetição, se definem por locuções esvaziadas de sentido aplicadas a torto e a direito no discurso. E não é um enorme vazio o que se manifesta nalgumas pessoas que parecem raciocinar por clichês?
Vivemos numa sociedade que historicamente menospreza o saber, privilegiando o empirismo, e quando o valoriza é, de um modo geral, muito pela “nobreza” que isso significa no imaginário das gentes, não pela delícia particular, subjetiva e intransferível causada pelo saber. Também por isso a existência de “dotôs” sem doutorado. Funciona muitas vezes como um chiquê, uma Ferrari simbólica e invisível.
Essa preferência guarda similaridade com o nosso particularíssimo racismo, no sentido de que disfarçada por meio de muitas maquiagens retóricas. E suspeito que assim como o racismo pôs a cabeça de fora, largou mão de pudores, e por consequência deixou cair suas máscaras, suspeito que nossa falta de apreço pelo saber também esteja seguindo essa via. Orgulhosa da ausência de embasamento na realidade ou no conhecimento formal, há uma multidão de nós, brasileiros, papagueando frases e conceitos que, assim como lá no caso do repentista, “soam bem”, pois estão de acordo com uma série de representações que trazemos arraigadas em nós, principalmente por meio de estereótipos.
Como na estória do violeiro, a repetição infinita de frase feita ou de palavra de ordem pode vir a calhar porque nos dá tempo bastante para, diante de um dilema conceitual qualquer posto na vida prática, encontrar uma resposta de verdade, coerente com os fatos, que rime com o verso anterior. Ou, pelo contrário, serve como um guarda-sol debaixo do qual podemos nos esconder até que as abrasadoras palavras alheias que nos fazem suar frio se acalmem.
Mas, quando de fato se pretende soluções, como encontrá-las se inexistir real desejo pelo saber? Não é possível, por exemplo, alcançar minimamente a realidade sociopolítica do País sem compreender os fios dessa teia, que avançam para muito além das exterioridades.
A repetição do senso comum também vem a calhar por causa da unanimidade que o sujeito num repente consegue no meio social sem que para isso seja necessário conhecer muita coisa acerca do que está sendo dito, apenas suas superficialidades e alguns glacês. Repetir o que está sendo repetido funciona como a plateia diante do repentista. E este se anima ainda mais e perpetua o estribilho, tanto o quanto puder. É um curioso mecanismo de retroalimentação (ou seria melhor dizermos autofagia?), uma espécie de ouroboros discursivo: a partir dele não se avança para um ponto adiante. Ao contrário, há permanência no mesmo lugar, como quem marca passo. É, nesse sentido, um conservadorismo.
Quase certamente naquele interior do Espírito Santo onde meu pai disse ter havido o episódio, hoje não existe mais desafio de viola, acredito eu, urbana criatura que sou. Acaso subsista, é sem o vigor de outrora. Lamentável. No entanto, permanece, em todos os cantos de nossa sociedade, o repentista inábil da estória, agora transmutado na tática de repetir verbalmente aquilo que parece bom, bonito, “inteligente”. Com todos os vácuos que isso acarreta e representa.
Se não há como livrar-se por completo desse fenômeno da comunicação interpessoal, minimizá-lo passa necessariamente pela sala de aula, como quase tudo no Brasil. Tomando de empréstimo o Manuel Bandeira de “Evocação do Recife”, é preciso abster-nos de macaquear toda sintaxe que não nos pertença de fato, como sociedade e sujeitos; recusar solenemente o que nos é empurrado goela abaixo pelos veículos useiros e vezeiros nessa tarefa. Essa atitude talvez reduza os bordões sociais, nos desatordoe, faça com que paremos de perguntar ao léu: “ô gente, cadê Antero?”.
Eduardo Selga é colunista convidado do Clube de Crônicas
Imagem: naomecondene.com.br