Pontualmente, às oito horas da manhã de uma quarta-feira de agosto, exibia-se em seu melhor traje casual: bolsa preta, cabelos lisos grisalhos arrumados e seguros por um arco, cordão com medalhinha de Nossa Senhora, uma aliança e um relógio. Estava impecável e se protegia da chuva. Um dilúvio, dizia. Outros anunciavam como um sinal do céu em permiti-la sair de casa para passear. Limpeza do caminho, ouviu-se dizer.
Sempre desejou conhecer a Duomo, a catedral. Mas, em suas palavras, “Milão é para senhores”. Franca é uma senhora, italiana, de 75 anos, e que trabalha todos os dias no campo, faça sol, chuva ou neve. Cuida da lavoura, das criações, da casa, da comida, de todos. Tem a pele acariciada pelo tempo e as mãos emolduradas pelo trabalho na roça.
Está sempre em casa e carrega o trauma de ter saído uma vez, para um jantar de Ano Novo com o falecido cônjuge na casa de parentes, e um incêndio devastou tudo o que tinham. O esposo trabalhou para reconstruir os destroços e depois se foi embora da terra pelo desgosto que sofreu.
Sobraram dois filhos de comportamentos diferentes. Otello, o caçula, solteiro, companheiro e comportamento exemplar, também se foi, de repente, quando o coração parou de bater. Franca perdeu o chão. Sua vida foi estabelecida à margem desses homens. E ainda nos dias de hoje, quando convidada a fazer um passeio, disse que perguntaria ao filho mais velho se poderia viajar.
Na estação de trem, ela se surpreende e questiona a amiga:
— O seu marido não vai?
— Não.
— Nós vamos sozinhas?
É a primeira vez que faz uma viagem “sozinha” e recorda quando foi, em Lua de Mel, com o esposo, visitar uma ilha vizinha ao local onde reside. Inicia a contar e, quando se dá conta do prazer que está sentindo, imediatamente para de falar e troca de assunto. Olha as pessoas e volta-se para si, analisando-se por inteiro. Aquieta-se e retoma a falar da chuva e de como pode ser corajosa de viajar daquele jeito com aquela idade, debaixo de água. Tem a esperança de que o Sol volte a brilhar.
Franca mora a cerca de 50 quilômetros de Milão e, por alguma questão maior, nunca teve oportunidade de passear pela cidade. Foi uma vez rapidamente a um enterro. Entretanto, diz que não deu para ver nada, além de um velório.
Assim que chegou, o céu se abriu. As luzes subterrâneas a deixaram impressionada com o sistema de trem e metrô. A artrose e osteoporose, limitando os movimentos das pernas e incomodando com a coluna, a fizeram não experimentar as escadas rolantes. Usou os elevadores. Dizia, para quem com ela conversava no trem, que uma estrangeira a levava para conhecer a sua Itália, o seu próprio lar. Ironia. Como pode isso?
O olhar preocupado com o deslocar do metrô e a ansiedade aumentada pelo ar sombrio do subsolo foram disseminados com a luz que surgia a cada degrau em que alcançava a praça da Catedral. Era como se tivesse visto… Não tinha uma palavra. Havia o silêncio contemplador diante daquele monumento católico de estilo gótico. Ficou ali olhando e admirando o que via à sua frente. E, aos poucos, o semblante sério e recatado foi tomado por um sorriso, não aquele normal, mesmo não podendo exibir todos os dentes. Mas um da alma, do ser. Ela se via capaz de estar “sozinha” em uma cidade que não fosse aquela a qual se acostumou a viver.
“Preciso tomar um café antes de entrar lá.”Precisava respirar. Era hora do almoço e sentou-se em um restaurante na galeria Vittorio Emanuele II. Preferiu que a companheira decidisse o prato que iriam comer. Satisfeita, disse que a “ração” era muito boa, de primeira.
Sua vida está ligada ao campo. Mas, a cada movimento, a cada pessoa que surge à sua frente e menciona qualquer palavra de gentileza ou generosidade a faz se sentir gente, a faz se sentir mulher. Levanta a cabeça e percebe que faz parte do que está vendo. Na igreja, ainda na metade do caminho, pergunta “Será que aguento ver tudo isso?” Caminhava, sentava, levantava e seguia em frente. Não só viu tudo, como se permitiu percorrer a cidade e desbravar outros monumentos ainda que desconhecidos pelos ouvidos.
Ao optar pelo gosto de vida, imortalizou o momento em fotografias. Percebeu que a idade não é um empecilho para conhecer o novo. Agora, diz que pretende viver aberta ao amanhecer. Abriu a porta de casa e se deu permissão de ser Franca consigo mesma.
(Agosto de 2014)
Foto: Edsandra Carneiro