Nos últimos cinco anos, morando em um condomínio de casas no Estado do Rio Grande do Sul, fui obrigado a só dormir após o início da madrugada. A Lani não fazia xixi em casa, embora nunca tenha sido obrigada a isso. Mas, talvez por polidez, sempre pedia para sair, para passear.
Eu tinha a “função” de sair com ela próximo à meia-noite, às vezes em um frio de zero grau. E a função dela era a de me levar para ver o céu muito estrelado, que eu não observava desde muito jovem. Vi umas três vezes chuvas de meteoros (ou estrelas cadentes), somente porque ela me carregou para o passeio.
A Lani pega qualquer porcaria da rua: osso, pedaço de plástico, comida velha… Tenho de ficar muito atento. Em casa, não posso dar mole com remédio, material de limpeza, qualquer objeto pelo chão. Tudo é perigoso!
Outra função da Lani? Me preparar para ser pai. Já sou pré-noiado com tudo, deixando a casa segura para quando a bebê nasceu. Se eu ia limpar uma remela no olho da Lani, e doía, ela mostrava os dentes de uma forma raivosa, e latia, tremendo os lábios e fazendo um assustador grrrrrrrrrr….
Mas, trinta segundos após, lá vinha ela lamber as minhas mãos, como dizendo “desculpa”. Mais uma função da Lani é me ensinar que o desentendimento momentâneo não pode estragar a beleza e a potência de uma relação de afeto.
A Lani tem 12 anos, mas está há sete comigo. Há uns quatro, foi diagnosticada com um câncer maligno. Eu, cheio de coisas para fazer no trabalho, criei uma rotina por duas semanas: entrar com ela no quarto, apagar as luzes e mente e deitar ao seu lado, cantando as músicas que mais gostava.
Ela suspirava alto de tranquilidade. O veterinário disse que foi um milagre o câncer ter sumido… Mês passado, foi internada. Está velhinha e tudo falha. Voltou para casa medicada e melhorou. Agora, foi internada novamente.
Quando minha bebê chegou da maternidade, a Lani a protegeu com um instinto materno. A maioria dos humanos perguntava: “Mas ela não está com ciúmes da neném?” Isso é sentimento de humano.
A Lani ficou um pouco triste, mas sentiu uma necessidade de proteger a bebê. Minha filha, quando nos dribla, pega a ração uma a uma e dá na boca da Lani. Sempre estabanada, arrancaria um braço de alguém pelo afobamento da fome. Mas chega a fazer beicinho tamanha a preocupação para não machucar a mãozinha da bebê.
Resumindo: um cachorro não serve apenas para buscar bolinha, rolar, fingir de morto, defender uma casa. Serve para que a gente possa olhar para a nossa própria natureza, cega pelas telas, vaidades, dinheiro, falta de tempo; pelo simbólico, pelo imaginário e pelo real.
A saudade que sinto dela agora, que está lá na clínica tomando soro, é comparável à função da arte. A função da Lani é a de congelar um momento. Ela vive pouco, mas vive muito. Vive pouco tempo cronológico, mas não perde o tempo com rancores, dinheiro, trabalho, falsidade, ganância, telas eletrônicas, vaidade…
(Janeiro, 2017)
Foto de capa: Lani, clicada pelo autor