Quem mexeu no meu chocolate?

O barulho vinha da mesa do computador. Era madrugada. Olhei o relógio: 3:30. Poxa! Não fazem nem duas horas que deitei e já acordo! Rolei para o lado e observei meu parceiro em sono profundo. Com o silêncio, o barulho volta. Viro de novo e tudo se aquieta. Conto carneirinhos; leio trechos de um livro; tento adormecer com a pedrinha da gratidão. O sono aproveitou o zumbido, fugiu e sequer deixou recado.

Levanto e passo pela minha escrivaninha para pegar o computador portátil. Percebo que meu chocolate está revirado e, aparentemente, comido. Interrogo em pensamentos: “Uai! A que horas o Arjan mexeu no meu chocolate?”

Fiquei matutando se eu estava grogue. Talvez tivesse tomado um remédio para dormir e nem me lembrava. Ainda estava escuro e também não acendi a luminária de mesa para conferir. Para quê?

Desci as escadas e fui para a cozinha. Preparei um chá, ajeitei-me na bancada e abri o notebook. Noite fria, chuvosa e escura. Entretida, escrevendo uma história, ele surgiu sob a luz baixa do outro lado da bancada, bem pertinho da torradeira.

Na verdade, não sei por quanto tempo ele estava ali a me observar. Só percebi quando fui beber o primeiro gole do chá. A cena congelou. Fiquei imóvel e perplexa, analisando aquele ser me encarando de um jeito destemido, chegando a ser sarcástico.

Ali, parado, com as patinhas dianteiras elevadas, os dentinhos iam roendo as migalhas de pão giradas em uma velocidade contrastante ao slow motion dos nossos olhares. Aquele ser minúsculo era um rato.

Rato? Sim, um rato! Mas não era um comum, daqueles vistos muitas vezes em outros lugares. Pequeno demais, redondinho, me pareceu até bonitinho de tão fofinho. Era também tão seguro de si que nem se moveu. Ou melhor: apanhou outra migalha de pão e continuou na mesma posição.

Obviamente, a culpa é sempre do outro, né?! Pensei: ‘Ai. Amanhã, o Arjan vai se ver comigo! Já falei para manter a cozinha limpa antes de ir dormir.’ Que nada! Pelo jeito, a intrusa ali era eu.  Fiquei até sem graça, incomodada. Ele me encarava de tal forma que não era normal. Como assim? Resolvi apelar:

— Ei, quem é você?

Silêncio.

Se você é daqueles que dá “Bom dia!” para os apresentadores do jornal da manhã, deve conhecer a comunidade “Falando Sozinho” — a Martha Gonzalez já escreveu uma crônica aqui no clube — e vai entender o que estou contando.

— Seu rato, assim não dá, né?! Pôxa! Como você veio parar aqui? E… — ele continuava na mesa posição, fazendo-se de desentendido. Deixei para lá. Acho que eu é que preciso conversar com alguém. Depois de comer a última migalha, ele se foi. Nem percebi o momento em que isso ocorreu, envolvida com o que fazia.

Amanheceu. Quero dizer, pelo relógio, sabia que era dia mas, pela escuridão, ainda via a noite. No café da manhã, pergunto ao meu parceiro sobre a barra de chocolate:

— Fui eu não. A zumbi da casa é você!

— Se não foi você e não fui eu. Então, quem foi?

— Agora, você vai me dizer que temos fantasmas aqui em casa? Esse seu trabalho está fazendo a sua cabeça. Você precisa dormir.

Subo as escadas correndo, acendo a luminária e lá estava a prova. Foi ele! Ah, aquele minúsculo ser! Como ele pôde ser capaz? Em poucas horas, roeu o equivalente ao próprio tamanho e ainda estava na cozinha comendo migalhas de pão. Isso não é normal, não!

Dei uma geral na cozinha. Tirei dois dias livres e limpei tudo com vinagre. Encontrei a vizinha  do segundo andar na escada e relatei o ocorrido. Claro! A culpa era do vizinho do primeiro andar.  Ela afirmou com todo furor:

— A casa dele está sempre imunda, com restos de comida para todos os lados. Por causa dele, temos intrusos no prédio.

Intriga saber como aquele ser chegou ao topo de um prédio de escadas. Estou no terceiro, mas equivale ao quinto piso.

Nada de veneno, nem ratoeiras, era a nossa única certeza. Compramos aparelhos ultrasônicos contra ratos e combinamos estratégias, inclusive entrar na casa do vizinho e limpar a mesa e geladeira. Ao menos retirando o excesso de comida, evitaríamos o banquete dos inquilinos subterrâneos. Ufa! Funcionou!

Viajo por alguns dias. Ao retornar para casa, abro a porta do banheiro e dou de cara com quem? Sim, ele! Só faltou dizer: “Oi!” Minha reação foi fechar a porta e abrir de novo. E lá estava ele, no mesmo lugar.

— Não é possível! Que bicho é você? Assim já é demais! Peraí, né!? Mais respeito, óh! Quem você pensa que é?

Já batia o desespero por não saber lidar com a situação. Mas sentia uma sensação estranha, tipo “que bonitinho!” e me pegava pensando: O Arjan pode até ter razão. Talvez o ratinho gostaria de ser nosso bichinho de estimação. Oi? Não! Aquilo foi uma brincadeira. Eu preciso dormir.’

E o ratinho ali, me olhando com a maior cara de piedade. O que será ele pensava de mim?

— Olha, eu vou me retirar e o senhor faça o favor de ir embora! Se a Nerina (a gata que mora na casa da Itália) estivesse aqui, o senhor iria ter sérios problemas. Hum?

Levanto as sobrancelhas e ele eleva a cabeça. Bom, acho que dessa vez fui entendida.

Na manhã seguinte, pelo jornal da manhã, a apresentadora anuncia que os policiais tinham capturado um ratinho. O bichinho invadiu a casa de uma senhora que não perdeu tempo e chamou a Polícia. Foi imediatamente atendida. O assunto virou manchete nacional. Pelas imagens, o bichinho foi solto na proximidades de uma área verde.

Ainda desconfio que ele descubra o caminho de volta. Inclusive o da minha casa.

Fevereiro de 2017

Ilustração: Rato Remy do filme “Ratatouille”, Pixar em 2007.
Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.

 

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