Você provavelmente já ouviu falar no diabo. Mas você já o viu? Quero dizer, de carne e osso, feito homem? Eu já, se assim posso afirmar. E adivinhe onde me encontrei com ele? Na missa, em uma igrejinha no meio de um morro.
Ela abre as portas uma vez ao ano no dia de São… Ops! Não vou revelar o santo ou a santa para não comprometer um ou outra com o Pai Eterno. Alguns dizem que o santo não tem culpa de nada. Outros pensam que o santo fraquejou quando deixou o excomungado entrar. E há quem diga que, nestes tempos de crises, até a santa tem piedade do diabo.
Agora, veja você! Eu, que de religiosa tenho só minha mãe, fui assistir à missa como uma boa desculpa para ver os deslumbrantes afrescos internos do templo. Aliás, na minha opinião, aquelas pinturas são como tesouros podendo ser contemplados somente a cada 364 dias. Ou, em outro caso, por aquele com a chave da porta.
Quem? Fui saber do padre. Buscava também respostas para umas perguntas históricas, mas a meia dúzia de fiéis o contemplava como o homem santo da região, à espera de pequenos milagres. Quando o frei me acenou, pedindo para conversamos ao final da missa, busquei um lugar para me sentar bem aos fundos da pequena construção, pelo lado esquerdo.
Enquanto viajava nas belas imagens setecentistas do lugar, um casal veio sentar ao meu lado. Pensei: “Com tanto lugar para se sentarem, logo ao meu lado.”
— Bom dia! — falei entre os dentes, com um sorriso sem graça.
— Bom dia! — respondeu a senhora com uma interrogação no olhar. Enquanto o senhor fez um gesto com a cabeça.
Silêncio. Que alívio! Volto a contemplar os afrescos.
— Você é nova por aqui, né? É estrangeira? — balbucia a velha, interrompendo minha viagem por séculos de história.
Algumas perguntas corriqueiras e a nossa conversa se transforma em um breve conto lendário. Eu tinha interesse em saber mais sobre o lugar e ouvia os causos da velha. Contou-me que se casaram na igreja em frente à casa onde moro. Depois, ela foi abandonada, saqueada e desconsagrada.
Fiquei curiosa para ver as antigas fotos de casamento e assim reviver os afrescos da capela vizinha, saber do passado da comunidade para entender o presente etc. Combinávamos um encontro quando os olhos do homem chamaram minha atenção, a ponto de me perder da conversa.
Não era um olhar comum. E nem era porque ele é um homem atraente, pelo contrário! O cara é muito particular. Era um olhar de velho, mas, geralmente, olhar de velho pode ser confortante, ainda que seja infestado por catarata. Era estranho, vazio, frio. Parecia um abismo observá-lo.
O homem não reagia às indagações e às lembranças da esposa. Apenas resmungava e observava tudo à volta, inclusive eu. Para mim, o olhar é a janela do coração. É por ele que costumamos manifestar aquilo que não se pode expressar em palavras. Revela o nosso ser, o nosso órgão pulsante mais interno. E é por ali que penetra a luz que ilumina e alimenta nosso ser interior, nosso eu.
Pois bem! Quando meus olhos cruzaram com os do velho, me vi presa e aflita em uma imensidão de milésimos de segundos. Sabe quando se sente um calafrio na espinha dorsal em dia de Sol? Eram estranhos e assustadores, a ponto de sentir um vento frio passear pela minha coluna. Mas, como o que assusta pode atrair, fiquei — e ainda estou — intrigada com aquele fitar macabro.
A conversa com a velha foi interrompida por uma conhecida que veio me cumprimentar. Antes de me despedir do casal, pedi o contato dos mesmos. Foi quando o homem reagiu:
— Você não precisa anotar nosso contato. Todos aqui sabem quem somos.
Fiquei desconcertada. Considerei o comentário um tanto presunçoso. A senhora se encolheu toda, sem graça. Agradeci e fui para o lado de fora. Lá estava o, agora falecido, Gianfranco e os cachorros: Camillo, Jack, Nerina, Palina, Pioggia e Zara. Ele tomava conta dos animais para evitar algum distúrbio. A missa começava. Era acolhedor trocar uma prosa com o saudoso Gian.
Eu observava tudo e a todos pela porta da igreja. Lá pelos meados do sermão do padre, Pioggia passou por entre as portas, esbarrou nas minhas pernas e foi ligeiro se sentar lá no altar ao lado do pároco. Estava quietinho e prestava atenção ao que o padre falava. Que cão comportado! Se não fosse o zum-zum-zum dos fiéis tocando o bicho para fora do altar, Pioggia não teria ido para a sacristia. Alguém foi retirá-lo de lá. “Para quê? O bichano não fez nada” — pensava eu.
Alguma coisa estava fora do normal naquela missa, muito agitada e alvoroçada. Todavia, em uma simpática calmaria, dizia o frei franciscano:
— Meus caros, a casa do Senhor é de todos. Todos nós somos amados pelo Pai. Por favor, acalmem-se.
O zum-zum-zum e os entreolhares continuaram até o final da celebração. Foi quando, então, algumas beatas vieram comentar quase em forma de confissão. Aos sussurros:
— Minha filha, você precisa se benzer.
— Por quê?
— Porque esteve com o Diabo.
— O quê?
Olha, eu sei que posso até ser uma alma perdida. A minha mãe costuma me benzer (mesmo distante) contra mau-olhado. Os orixás já me avisaram que meu protetor é São Jorge. Dias desses, tive uma aula com Miguel Arcanjo para superar medo, mas 99,9% da informação ficou somente na teoria. Faz algum tempo, um mago bateu à porta, disse que era importante dialogar com os fantasmas e desapareceu sem me dar tempo de sanar qualquer dúvida…
— Quem é o Diabo? Por favor, posso ao menos saber como foi esse encontro que nem mesmo eu recordo?
— Ele veio falar contigo aqui dentro da casa do Nosso Senhor. Ele se faz de anjo e santo para destruir os outros.
— Quem?
Aquilo me causava náuseas e agonia.
— O Senhor F. Ele é o Diabo em pessoa.
— Aquele homem é o Senhor F? — isso explicava, em parte, o olhar macabro.
— Sim. Proteja-se. E mudavam de assunto. Disfarçavam quando sentiam ameaçadas pelo olhar dele.
Comentavam isso repetidamente e em forma de sussurros. Tudo para evitar que o Diabo ouvisse.
— Você esteve com ele. Ele é lobo em pele de cordeiro. Tome cuidado — comentavam outros.
— Ele não tem respeito nem com o Pai. Como ainda tem coragem de visitar a casa do Nosso Pai e fazer tanta maldade? — desabafavam outros, em revolta.
Bem, desde que pisei em solo italiano, sempre ouvir falar no tal Senhor F. Quero dizer, falarem mal. Nunca ouvi ninguém dizer uma palavra boa ou amiga a respeito dele. São histórias sombrias, sem informações precisas. Entendo que algumas pessoas venderam as almas para ele, em forma de casa ou bens, e nunca foram recompensadas.
Ele é um fazendeiro da região e, pelo que contam, relembra muito os senhores de terras do imenso Brasil. Já ouviram falar nas histórias de senhores de engenho? Mais ou menos assim. Cabra temido e odiado por todos daqui.
Até o prefeito da cidade tem receio dele. Quando fui conversar com a autoridade local, sobre a necessidade de uma luminária para a comunidade, um técnico acolheu minhas sugestões. Quando se apresentou, disse:
— Senhora, muito prazer! Sou o Antônio F! — e, antes do próximo respiro, completou: — Por favor! Não tenho nada a ver com o Diabo. Fique tranquila.
Fiquei sem reação. Quando me recompus, minhas indagações sobre o Diabo ganharam respostas vagas.
Dias depois, alguém me diz:
— Aquele Antônio F, da Prefeitura, é o Judas. Ele é primo do Diabo, mas se faz passar de bom homem. Quando ele beija a sua face é porque já entregou você para o demônio.
“Que assustador!” — penso sempre. E espero não ter oferecido minha face para ser beijada.
Bom, o Senhor F possui a maior parte das propriedades desta região. Ele tem informantes (capangas) por toda parte, de italianos até albaneses. Dizem que não respeita ninguém. Avança território alheio, toma propriedades de terceiros e constrói sem ao menos pedir permissão (aqui é uma zona histórica, e qualquer afazer ou reforma em casa deve ser solicitado e comunicado primeiro as autoridades).
Quando pergunto sobre o que o Senhor F fez ou se ele já matou alguém, a resposta é sempre vazia. Dizem que ele é um homem invejoso, que quer dominar a todos, que quer ser o Pai de todas as coisas…
Para cada ser que cita o nome de Senhor F, uma lasca de ódio, angústia e ressentimento é fatiada ao próximo. Para todos, é um ser destruidor. Ele se apresenta em poucas ocasiões. Causa arrepios. Todos querem exorcizá-lo, matá-lo.
Passaram-se alguns anos e asseguraram que o velho tinha morrido. Afinal, já está na hora dele partir, acreditam alguns. Há quem diga que ele deixou o filho. Outros afirmam que percorre pela escuridão, de modo que ninguém o veja. Virou fantasma e agora deve aterrorizar pela noite.
Tempos depois, o Diabo reaparece. Está mais vivo que todos. Caminha devagar, mas está vivo. Ele não morreu e creio que nunca morrerá. Sua alma deve ser eterna e vagará pelos tempos.
Sou surpreendida quando descarregava alguns itens do carro. Ele caminha em minha direção. É silencioso. Mais uma vez, nosso encontro é em frente a uma igreja. Acho esta coincidência um capítulo à parte.
Desta vez, eu quebro o silêncio e digo:
— Bom dia, senhor…!
Ele simplesmente me encara sério sem dizer uma palavra e segue o seu caminho. Cheguei a me questionar se tinha visto uma assombração. Outra vez o calafrio. Boquiaberta e incrédula, observo ele entrar no beco de casas e me volto para o quintal. Esbarro em meu parceiro e comento:
— Acabei de ver o Senhor F. Você já reparou o olhar dele? Nossa! Será ele tão antipático ou falo eu muito baixo…? — comentei, confusa.
— Você viu o Diabo? Cadê? Aquele infame. Onde? Ah! Hoje eu pego aquele infeliz. Eu não tenho medo dele — inflava o holandês.
— Sim. Ele foi por ali, pelas ruínas. E você acha que ele quer papo contigo? Nem bom dia ele responde.
Meu parceiro saiu resmungando atrás do Diabo.
Por que a euforia? O Diabo levantou, recentemente (às escuras), uma parede ilegal em frente à nossa janela. Já reclamamos com as autoridades locais e, em resposta, nos pediram um tempo para solucionar o problema. De mês em mês a parede ganha uma emenda. Torna-se uma pequena casa.
Senhor F me faz crer que o Diabo é o mal que habita a sociedade. Faz parte de cada um de nós porque é o nosso semelhante. Ele é reflexo das nossas atitudes ruins. É o egoísmo, o desamor. É o desrespeito. É tudo aquilo de ruim que somos nós.
Senhor F é figurado na imagem de um homem para expurgar tudo aquilo que nos faz ser quem não queremos ser, mas que de alguma forma somos. Para mim, Deus e o Diabo são um só. Você, eu e todos nós somos uma verdadeira trindade, santa ou não. O que nos purifica enquanto santos, nos devora enquanto demônios e nos consagra seres enquanto humanos.
Meu parceiro voltou sem resposta. E eu sigo na esperança de ver o álbum de fotografias do casamento do Senhor F, completar parágrafos e conhecer a história também pela versão do Diabo.
Abril de 2016
Ilustração: Tentações de Cristo. Obra de Sandro Botticelli, 1481-1482. Afresco na Capela Sistina, no Vaticano.
Edsandra Carneiro escreve, quinzenalmente, às quartas-feiras.