Um gaiato berrou ‘‘miau’’ quando a Juíza entrou no Plenário. Alguns sorriram.
Ela olhou séria para a plateia. Precisava demonstrar que a Justiça não estava para brincadeiras.
Aliás, aquele caso só fora desarquivado porque o Judiciário tomara consciência da necessidade de melhorar sua imagem junto à sociedade.
— O povo anda nervoso — diziam os ministros dos Tribunais Superiores.
A história, todos conhecem, mas, apesar da pressão dos grupos de proteção animal, até então, a Justiça não havia se ocupado dela. Há tempos, a sociedade quer saber quem atirou o pau no Gato.
Mal a Juíza se acomodou e uma Menina gritou na plateia.
— Eu tenho um suspeito!
— Silêncio, garota! — ordenou a magistrada. E acrescentou:
— Tribunal não é lugar de brincadeiras. Chamem, Dona Chica-ca, a primeira testemunha.
— Eu me admirei, me admirei… — começou a senhora.
— Com o que, exatamente? — perguntou o Promotor.
— Com o berrô, com o berrô que o Gato deu. Depois, desmaiei. Não lembro mais nada.
— E quando acordou, não pediu ajuda?
— Estava só em casa. Meu Irmão havia saído.
— Mandem entrar o rapaz — ordenou a Juíza.
— Não vi nada. Com essa seca, fui ao Tororó beber água e não achei.
— Tem álibi?
— Sim! Achei Linda Morena, que no Tororó deixei.
— Mandem entrar a linda Morena.
— Identifique-se e responda se viu esse Rapaz no Tororó.
— Me chamo Rosa. Sim! Vi o irmão de Dona Chica-ca. Mas, ao contrário do que diz, não me deixou. Eu é que não quis voltar.
— Por quê? Sabia algo sobre o Gato?
— Não! É que eu havia brigado com o Cravo.
— É verdade! — gritou a mesma Menina da plateia, aproximando-se da testemunha.
E continuou:
— Vi quando o Cravo brigou com a Rosa, debaixo de uma sacada. O Cravo saiu ferido, mas a Rosa… Ah! A Rosa, despetalada.
— Isso é muito grave, Dona Rosa! A senhora não conhece a Lei Maria da Penha? Não denunciou o Cravo?
— Tive medo. Ele é da facção guerreira Escravos de Jó.
— Oh! — gritaram todos no plenário.
— Dominam tudo — continuou:
— Inclusive o jogo caxangá. Tiram, botam quem querem no poder. Acredito estarem envolvidos no caso do Gato.
— Chamem o Jó.
— Excelência! Embora denominem-se Escravos de Jó, o cabeça é o José ou Zé. A gente nunca sabe direito como chamá-lo. Já teve muitas identidades. Falam em códigos. Na última reunião, ouvi algo como “Tira, bota, deixa o Zé Pereira entrar.” Acredito ser este seu codinome agora.
— Tragam o Zé Pereira!
O plenário se agitou.
— O que o senhor fazia…
— Me reservo o direito constitucional de permanecer em silêncio.
— Mas o senhor nem sabe o que vou perguntar!
— Mas já sei as respostas.
— Veja bem, José! Essa história não envolve gatunos. É apenas um pobre Gato. Colabore com a Justiça, ao menos uma vez, e responda: o que fazia quando atiraram o pau no Gato?
— Ah! Isso… Bom, sou guerreiro! — respondeu levantando o braço, numa espécie de saudação, completando:
— E guerreiros com guerreiros fazem zig, zig, zag.
— Zig, zig, zag? O senhor costuma beber, seu Zé Pereira?
— Não, meritíssima! Não tenho dinheiro. Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, dici. E, onde moro atualmente, ninguém fica bêbado. Toda hora passam os Soldados Cabeça de Papel, que tudo veem.
— Chamem os Soldados.
— Para quê? — interveio, de novo, a Criança, completando:
— Papai sempre diz que a Polícia prende e a Justiça solta.
E fez uma careta para a Magistrada.
— Volte para seu lugar, Menina! Chega de careta ou vou chamar o Boi da Cara Preta para …
— Excelência! — advertiu o assistente, avisando:
— A imprensa está toda aí. O plenário, lotado. Cuidado com os termos.
— Tem razão. Podem achar a Justiça de anacrônica e desequilibrada por ainda usar recursos tão antigos, não?
— Nada! Isso ninguém percebe. Mas, pelo amor de Deus! O termo é Boi da Cara Afrodescendente!
Entraram os Soldados.
—O senhor é o Comandante?
— Sim, senhora!
— Enquanto marcharam pelas ruas não viram ninguém atacar o Gato?
— Não, senhora!
— Como pode? Um grupo de homens da Lei e ninguém ver nada?
— Concentração, senhora! Se não marcharmos direito, vamos presos para o quartel, senhora!
Os Soldados saíram. A Juíza foi avisada que não havia mais testemunhas, mas, intrigada com as constantes intervenções da Menina, resolveu chamá-la.
— Muito bem, Garotinha. Pode começar a contar.
— Um, dois, feijão com arroz; três, quatro, feijão no prato…
— Não, não… O que você fazia naquele dia?
— Ah! Cirandava com minhas amigas. Vamos sempre cirandar. Dar a meia volta, volta e meia vamos dar. Foi nessa meia volta que vi o Sapo, que mora na lagoa, andando na ponta dos pés em atitude suspeita.
— O Sapo? — perguntou a Juíza, endireitando a toga.
A plateia agitou-se. O promotor pigarreou. A Juíza ajeitou os documentos. Ao levantar a cabeça, seu olhar cruzou com o da Menina. Havia tanta esperança naqueles olhinhos. Lembrou-se dos filhos e do País que iriam herdar e determinou:
— Chamem o Sapo!
O Sapo entrou e houve quem desse pulos de alegria. Para alguns, ele ainda era príncipe.
— Por que o senhor andava na ponta dos pés?
— Ora, Meritíssima! Para não sujar o pé — coaxou, debochado.
Sapos, como se sabe, não respeitam a Justiça. Acham que não devem explicações à sociedade.
— Mas, Sapo, você mora na lagoa. Por que não lava o pé?
— Porque não quero! Nunca antes na História desse País, vi alguém ser obrigado a lavar o pé — retrucou com sua voz rouca.
Sapos, como se sabe, costumam ter, além dos pés, as mãos sujas.
— No meu habitat, estou rodeado de lama. Porém, não como mosca e dou meus pulinhos para a sujeira não espirrar em mim. Assim, estou limpo! Dito isso, apresentou um habeas sapus e saltou para longe.
O julgamento teve que ser suspenso. A plateia ficou perplexa com o pulo do gato que o Sapo dera na Justiça. O que acontecerá, só o tempo dirá. Mas, se o Sapo escapar para sempre, essa história só poderá ser cantada, no futuro, com uma canção:
— A canoa virou, porque deixaram ela virar…