Três poemas sobre o Ano Novo

por Ana Gosling

Começa um pouco antes do Natal e chega ao clímax no Reveillon. É a época do encerramento, da esperança no futuro, do projeto de felicidade mais próximo. Os olhos se enchem de lágrimas à meia-noite do dia 31 de dezembro com o coração estufado pela certeza do recomeço ou ficam perdidos no equacionamento das tarefas que vão facilitar as mudanças. O ano virou, são novos os tempos e as expectativas.

Todos passamos por isso. Não necessariamente de uma maneira intensa, como descrevi, mas o fim do ano sempre sugere, de forma geral, o fim de um ciclo. E ciclos, quando terminam, fazem-nos pensarmos nos que se iniciam. O recorte que ocorre na virada do ano torna mais real a sensação de que o jogo zerou, a vida recomeçou ou de que estão brancas as páginas do livro de uma nova história que vamos escrever a partir do minuto seguinte.

É um recorte artificial. Precisamos de rituais e de referências que nos obriguem a dar uma parada na rotina insana e automática dos dias. E as datas festivas, normalmente, provocam esse re-pensar a vida. Precisamos que algo ou alguém suspenda o tempo para que possamos refletir sobre nós ou sobre as pessoas e as coisas que nos importam e sobre o mundo que nos cerca.

Entretanto, na contramão dos fogos de artifício e dos gritos de alegria, as vozes de três poetas queridos ecoam na minha cabeça nessa data. São meus poemas favoritos de Ano Novo, sem firulas, sem bordados, sem imagens de falsa e romântica esperança, reais, crus, mas, ao mesmo tempo, poéticos (logicamente) e sinalizadores de que precisamos mudar o futuro e não esperar que as mudanças cheguem porque, simplesmente, o futuro chegou.

O primeiro poema é de Fernando Pessoa, chama-se “Ano Novo” e são estes seus versos:

Ficção de que começa alguma coisa!

Nada começa: tudo continua.

Na fluida e incerta essência misteriosa

Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.

O mesmo rio flui onde se vê.

Começar só começa em pensamento.

“Nada começa”. Pronto, o primeiro balde de água fria na mente de um sonhador. Nada começa, apenas continua.

Particularmente, gosto quando o poeta diz que a vida flui; como um rio, flui. Porque o verbo “fluir” contém uma ideia de movimento maior do que o verbo “continuar”. Continuar é dar sequência ao que se tem, ao que se vive, repetir os passos. Fluir é movimentação irregular, por caminhos inesperados; é continuidade no andar, subir e descer por pedras enquanto se deixar levar pela correnteza; é passar pelas curvas do rio. Gosto também quando diz que tudo percorre incerteza e mistério. Também quebra a ideia de estagnação: se apenas continua, lembramos que, mesmos nos caminhos conhecidos, a vida pode abrir-se em mistérios.

Perfeita a imagem que cria: a água, mesmo estando nua, flui em sombra pela misteriosa essência da vida. Numa leitura pessoal, mesmo nós, entregues com a alma desarmada e exposta, caminhamos para o novo, para novos caminhos, no escuro e sem a certeza de sucesso nem de fracasso, porque a vida é, essencialmente, imprevisível.

O início do poema é enfático (“Ficção de que começa alguma coisa!”) e o poeta o termina dizendo que “começar só começa em pensamento”. Mas este último verso, por um lado, embora reforce a ideia de que só em nosso pensamento alguma coisa se inicia, por outro, aponta a direção de um começo: o pensamento.

Seriam o nosso pensamento, a nossa vontade, as nossas ideias, os primeiros passos para a mudança? Porque a vida, já sabemos, apenas continua, apenas flui. Mas a mente sonha a ruptura desse fluxo. Então não seria justamente a mente que provocaria a ruptura, as ações, que elaboraria os projetos de uma mudança real?

São só sete versos e sempre me fazem pensar. Principalmente, quando me lembro de outro poema, de Carlos Drummond de Andrade. Chama-se “O Ano Passado”. Diz:

O ano passado não passou,

continua incessantemente.

Em vão marco novos encontros.

Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,

e as pessoas, também as mesmas,

com iguais gestos e falas.

O céu tem exatamente

sabidos tons de amanhecer,

de sol pleno, de descambar

como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado

sepultam-se todos os dias.

Escuto os medos, conto as libélulas,

mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.

Não consigo evacuar

o ano passado.

O tom melancólico do poema sugere uma desesperança, uma resignação. Já estamos vivendo os dias do ano que chegou e nada de novo surgiu. Estamos presos num ciclo de mesmas coisas, mesmas rotinas, mesmas pessoas, mesmo lugares. O poeta usa até um superlativo (“o repetidíssimo ano passado”) e um advérbio (“incessantamente”) para ratificar a ideia de que o ano não passa, repete-se e, pior, repete-se sem parar. “E será sempre assim daqui por diante”, diz. Tudo é conhecido: o script dos encontros novos que repetem scripts dos anteriores, os tons do céu, gestos e falas das mesmas pessoas, os mortos de hoje que remetem aos mortos de ontem. O ano passado não passou. Continua. Como no poema anteriormente analisado, a vida é só continuação. Trocar passos e repetir caminhos. Marcar encontros e reproduzir falas, temas, locais. É um “tocar para a frente” a vida mas, paradoxalmente, estar preso num ciclo. Entretanto, o sentimento do poeta é muito conhecido no nosso íntimo: a sensação que se tem, às vezes, de que se está apenas passando pela vida, numa contínua repetição de rotinas. É uma sensação angustiante: a vida não muda – apenas continua.

Na linha dos dois poemas anteriores, há o de Ferreira Gullar, chamado “Ano Novo”.

É o meu preferido sobre a data oficial. É, a meu ver, o mais lírico, num tom menos ranzinza do que os outros e mais amoroso/generoso com a inocência humana. Eis o poema:

Meia-noite. Fim

de um ano, início

de outro. Olho o céu:

nenhum indício.

Olho o céu:

o abismo vence o

olhar. O mesmo

espantoso silêncio

da Via-Láctea feito

um ectoplasma

sobre a minha cabeça

nada ali indica

que um ano novo começa.

E não começa

nem no céu nem no chão

do planeta:

começa no coração.

Começa como a esperança

de vida melhor

que entre os astros

não se escuta

nem se vê

nem pode haver:

que isso é coisa de homem

esse bicho

estelar

que sonha

(e luta).

O poema de Gullar é o da virada, o da meia-noite. O narrador olha para o céu e nada vê. Não há sinal de que algo tenha mudado. Um novo ano começou e não há qualquer indício. “Nada começa”, lembram-se? Os astros continuam em silêncio, o abismo do infinito engole o olhar do poeta, mostra-lhe que sua percepção possui limites. O interessante aí é que a observação se faz sobre os aspectos físicos: o céu, a Via Láctea, os astros que nada lhe sinalizam. E sua percepção muda de física para abstrata e então se alarga: não há mudança no céu, não há mudança na terra, mas há mudança no coração do homem. É no coração do homem que começa a ruptura – e ele usa o verbo “começar”, como usou Pessoa em seu poema, em ideia antagônica. E a belíssima estrofe final nos redime: o novo começa no coração do homem, na esperança que há no coração dos homens. E isso não se vê, não se escuta, nem entre os astros, porque só está no homem, que é “bicho estelar que sonha (e luta)”.

Do que mais gosto aqui? A mudança que se espera, que nos renova, começa em forma de esperança nos nossos corações. Só o homem é capaz de promover essa mudança porque sonha e …porque luta. Quando o poeta usa o verbo “lutar” cria a possibilidade concreta da mudança. Se o homem só sonhasse, podia ser só ilusão, como no poema de Pessoa; mas o homem luta! E lutar é gesto provocado pela mente, é atitute, é o contrário da resignação no poema de Drummond (“será sempre assim”).

Os três poemas me dizem muito sobre como vivemos ou deixamos de viver as nossas expectativas em relação ao momento que nos trará as mudanças necessárias para encaminharmos a nossa vida na direção da nossa realização pessoal ou da felicidade em si. A vida é fluxo de rio, contínua, ininterrupta. Às vezes, premia-nos; noutras, atropela-nos. É no homem, em sua mente e em seu coração, que está a fórmula revolucionária para sua vida. A vontade e o pensamento que pode criar o gesto e empurrar-lhe numa nova direção. É no homem que está o milagre da mudança. Na luta do homem, que é o passo seguinte ao sonho. E o sonho é o passo seguinte à constatação de que nada mudará se não houver sonho e se não houver luta.

Somos bicho estelar que sonha e luta. Somos pequenos diante do Universo que não alcançamos com o olhar e, por isso, não compreendemos inteiramente. Não vemos os indícios e repetimos os caminhos, na segurança da rotina dos dias. Vivemos em ciclos e podemos, eventualmente, imaginar que a mudança é ficção. Apenas continuarmos, ou melhor, fluirmos. Percorremos caminhos incertos que podem ou não desembocar em mesmas paisagens. Mas carregamos no coração a esperança do (re)começo, de uma vida sempre melhor. E é o coração que impregna a mente e a faz provocar o gesto que buscará a mudança.

Bicho “estelar” que sonha e luta, ele diz. O que nos transforma não são as promessas de um novo ano, não é a conjuntura de astros no céu à meia-noite, nem o amanhecer do primeiro dia ou a mágica da virada. O que nos transforma são as estrelas em nós, é o sonho que trazemos no coração e o que fazemos de concreto para realizá-lo. Ainda que os astros se curvem, os céus abençoem, as luzes se acendam, o que transforma a nossa vida (e o mundo, numa perspectiva maior) é a nossa capacidade humana de ter esperança, sonhar e lutar.

Feliz Ano Novo a todos!

Ana Gosling é cronista convidada do Clube

Texto publicado originalmente no site artecult.com

Imagem: www.letrarabiscadablogspot.com