Vale a pena continuar aqui?

Se pudesse, começaria este texto contando ter passados os últimos anos viajando pelo mundo inteiro com apenas uma mochila nas costas, aprendendo novos idiomas, conhecendo diversas culturas, desfrutando outros costumes e descobrindo um pouco mais de mim mesma a partir do contato e reflexo do desconhecido. Afinal, a relação com o próximo permite-me observar, ouvir e compartilhar histórias…

Todavia, minha verdadeira viagem foi um tratamento intensivo em uma clínica especializada em adultos com sintomas psiquiátricos graves. Durante meses, anjos e demônios surgiram de lugares dentro de mim jamais pensados. Angustia, depressão, bipolaridade, burnout, síndrome do pânico, transtorno pós-traumático… Em outras palavras: doença mental.

A Psicologia, a Psiquiatria e a Neurologia entraram em ação, numa espécie de investigação interdisciplinar, para diagnosticar meu cérebro e minha mente.

Como grande parte da população mundial, cresci ouvindo depressão ser uma frescura. Ou melhor: quaisquer tipos de transtornos mentais eram considerados “falta de vergonha na cara ou carência do que fazer”. Afinal, bem como um médico me disse, “às vezes, é melhor partir uma perna a ter uma doença mental”. Irônico, porque já tive as duas pernas simultaneamente quebradas.

Pois bem! Durante meses, estive em uma sala com câmeras e microfones, conversando, dias após dias, com vários especialistas sobre a minha saúde mental. Diante do que classificaram como “sobriedade racional e capacidade de relatar os fatos por meio de histórias em terceira pessoa”, como se eu não fosse eu, ficou constatado apenas ser um problema de Metafísica: a impenetrabilidade.

Minha mente e o meu corpo não queriam ocupar o próprio espaço ao mesmo tempo. E, como o meu eu interior não tinha mais noção em saber quem eu era, ficava difícil aceitar encontrar uma solução para um enigma existente há anos.

Entretanto, o ser denominado Edsandra nem sequer aceitava necessitar de ajuda. Aos poucos, foi desmoronando, até ser obrigada a demandar apoio.

Em um ringue de brigas internas constantes e quedas físicas desconcertantes, remédios foram prescritos para aliviar dores das feridas profundas ocasionadas pelos cortes contínuos. Até hoje, algumas cicatrizes permanecem dormentes.

Em um contexto popular, poderíamos dizer: as vozes estridentes dentro da cabeça de um humano, aparentemente calmo, podem implicar um comportamento “anormal”, diferente ou desviante, compreendido como sensação de enlouquecimento.

O fato de uma criatura ter a mente programada para acreditar não ser suficiente para nada neste mundo pode levá-la a odiar a si mesma e, então, decidir eliminar a imagem refletida no espelho. Isso costuma ser convertido como tentativa de suicídio.

Dessa forma, um diagnóstico pouco conclusivo, seria dizer “o ser aprecia a vida, mas precisa aliviar a dor constante e a insuportável conivência consigo mesmo”. Algo como perder a crença em si e em toda a humanidade.

Então, não adianta julgar e crucificar alguém por ter optado em não querer mais viver. Às vezes, simplesmente não dá. Se todos nós pudéssemos entender, ou, ao menos, buscássemos compreender a dor do próximo, pararíamos com as tentativas de exorcismo dizendo que este, ou aquele, é o único caminho. E, sinceramente, não foi esse mesmo tal ser, tão proclamado pelas vozes abstrais, quem nos deu o livre arbítrio — a vontade de livre escolha?

A questão em si não é religiosa, mas sim espiritual — entenda-se: incorpórea, mental — e até mesmo científica.

Ao invés de entorpecermos o próximo com mil e uma perguntas sobre isto ou aquilo, que tal apenas ouvirmos?  No lugar de incontáveis incitações do positivo — “Vamos, não fica assim!” ou “Levanta dessa cama. Vamos aproveitar o lindo dia lá fora.” — que tal apenas permanecer em silêncio, ou apenas deixar saber que você vai estar ali para ouvir o que está causando dor naquele seu ente querido? No lugar de evangelizar, que tal apenas silenciar e escutar com a alma? Em vez de comentar, criticar, dramatizar, julgar a atitude do ator que se suicidou, que tal refletir sobre o que o levou a desistir da vida?

Quantas vezes estamos gritando silenciosamente de dor e, diante desse mundo tão barulhento e histérico, somos incapazes de ouvirmos nossas próprias vozes — que dirá as do próximo?

Acabei de voltar às vidas social virtual e fico abismada como quase todos alimentam uma necessidade incrível de serem o holofote da atenção. Praticamente, meros cidadãos tornaram-se especialistas em algo, principalmente, da vida alheia. Permaneço impressionada como tudo precisa ser postado ou comentado. E, diante desse bombardeamento de informações, contaminamos o nosso cérebro, adoecendo a nossa mente.

Será tão necessário competir com tanta indigência aparente?  Para quê essa avalanche de confetes superficiais, quando tudo começa com as nossas pequenas e simples atitudes diárias privadas. Quer falar de ética, moral e política? Que tal começar com a devolução do troco errado que a moça da padaria lhe deu a mais?

Aqueles que alimentam a desigualdade social são os mesmos que saqueiam os cofres nacionais. Os que tanto criam algazarra costumam ser os mesmos eleitores do poder. A namoradinha querida de um país é a própria fascista assumida diante de uma nação. O mesmo plano de saúde que sustenta a mudança de um hábito em transformação de uma vida é também o que nega atendimento a uma acidentada e aumenta, em plena pandemia, o valor da mensalidade dos velhos.

Nem adianta apontar o dedo para o outro, porque você é este outro. E todos nós, em algum grau de insanidade, somos hipócritas. Basta das desculpas esfarrapadas, dizendo que a culpa é daquele ou daquela. Vamos assumir nossos atos e responsabilidades. Afinal, não somos coitadinhos, e sim apenas resultados das nossas escolhas. Isso é fato. Ponto.

Enfim, não estou aqui para nenhuma lição de moral. Quem sou eu? Simplesmente, gostaria de pedir para você refletir antes de se manifestar quaisquer palavras diante de alguém com algum tipo de transtorno mental. Aliás, se você é humano, tem grandes chances de também ser ou ter sido contagiado pelo vírus do egotismo. E, pelo que sei, ainda não foi descoberta nenhuma vacina contra narcisismo.

Lembro-me, agora, de uma mulher, que passei a chamar de tia, logo após ter chegado à Europa. Aos 96 anos, poucas horas antes de falecer, disse que deixava para mim o espelho pendurado no quarto dela. Depois de uma prosa, tomou três goles de vinho tinto porque gostaria de dormir muito bem naquela noite. Ela simplesmente adormeceu e se foi, como se ela mesma tivesse decidido o tempo de ir. Se foi tão lúcida e certa de que não queria mais ficar aqui, não se matou, apenas deixou seu momento de ir chegar.

Tinha dito que estava cansada e sua hora era aquela. Essa mulher sabia o significado da importância de um espelho. Não aquela para checarmos se estamos bem arrumados ou sei lá o quê, mas o reflexo do nosso próprio espectro. É lá que devemos olhar para sabermos se estamos bem conosco.

Com o tempo, aceitamos ser um livro semiaberto para que outros possam ler algumas passagens. Quando optamos por existir, aprendemos a respeitar a nossa fragilidade, limites e vulnerabilidade. Começamos a compreender que não precisamos ter vergonha por nos sentirmos diferentes. Afinal, dói pedir e não receber ajuda.

Todavia, todo o processo de libertação dos males mentais requer uma longa caminhada, e aceitar estar doente já é o primeiro passo. Tentar resistir nem vale a pena, porque, dessa forma, caímos em um poço profundo no meio de um túnel e tudo fica ainda mais sombrio.

Olhar a si mesmo no espelho e dizer que sou suficiente para estar neste mundo ainda continua uma batalha diária. Todavia, resolvi optar pela vida, mas continuo em reabilitação. E, mesmo tendo deixado as medicações, ainda tenho dias de escuridão com doses de muitas dúvidas. Desse modo, quando escuto alguém dizer não querer perder quem se ama, peço para compreender a diferença de amor com a palavra apego. Apenas alguns poucos e bons amigos se esforçam para entender o que quero dizer.

Então, ao invés de continuarmos fazendo barulho por aí em um lamento desenfreado, que tal praticarmos o silêncio limpando o ouvido para os ruídos de dores abafados por esse mundo afora?

Não é a sua obrigação cuidar do próximo. Mas, se você conseguir ter uma atitude de amor a ele, livre de egoísmo (inclusive, virtual), talvez o mundo possa se tornar um lugar melhor e muitos de nós despertaremos o interesse de continuarmos por aqui.

 

Maio de 2020

Edsandra Carneiro volta a escrever, quinzenalmente, às quartas-feiras.

Foto de Luis Galvez em Unsplash